quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Singular, particular e universal (e fábula) no São Paulo de Badiou

Singular, particular e universal (e fábula) no São Paulo de Badiou1

Parece-me claro que um bom fio condutor para pensar a interpretação de Paulo dada por Badiou é o entrelaçamento entre as noções de singular, particular e universal. Na media em que esta interpretação tem em vista pensar a figura do militante, não seria de se espantar se esse fio condutor também ajudasse em alguma medida a esclarecer quem é essa figura. Paulo sairá de tal interpretação como o antifilósofo que produz uma cesura (histórica?) baseada nas puras leis do evento, mas não em uma verdade real (Badiou, 2009b, p. 126).
Antifilósofo”, na medida em que a filosofia, em seu surgimento enquanto subjetividade, baseia-se ou em uma (auto)fundação conceitual (no universal, portanto), ou bem se colocando sob procedimentos de verdade reais (científicos, amorosos, políticos, artísticos), dos quais ela, a filosofia, organiza “o acolhimento sintético”, “forjando ou remanejando” a categoria de Verdade. Com relação à primeira parte desta dupla possibilidade da constituição de uma subjetividade filosófica, podemos nos questionar se ela pode ser identificada com o forjar e remanejar a categoria de Verdade, uma vez que a “particularidade da filosofia” não é produzir verdades reais, mas organizar as verdades produzidas alhures.
Mas a antifilosofia de Paulo não pararia nesse sentido, digamos, “negativo”: positivamente, ela mostraria ao filósofo que “as condições do universal não podem ser conceituais, nem no que se refere à origem, nem no que se refere ao destino” (Badiou, 2009b, p. 126). Como é preciso compreender “conceituais” nesse trecho? O mais natural seria compreender como “universais”. Nesse sentido, se o universal tem por condição um acontecimento (como origem, ao menos), a sua condição é algo de singular, o que parece expresso no fato de que “se é certo que toda verdade surge como singular, sua singularidade é imediatamente universalizável” (Badiou, 2009b, p. 17) e no fato de que Paulo refere seu pensamento não a “generalidades conceituais”, mas a um “evento singular” (ibidem, p. 126) – essa relação com o evento singular, por sinal, é outra razão positiva pela qual Paulo é antifilósofo e não filósofo. Ainda que essa leitura funcione, fica ainda em aberto, parece, a relação entre os conceitos filosóficos e as verdades universais/universalizadas que ele organiza, em particular o que significa “forjar e remanejar” a categoria de Verdade.
Também corrobora com tal interpretação o fato de que, ainda que o filósofo atribua seu pensamento ao universal (Badiou, 2009b, p. 126), o “fundamento último” do pensamento e, assim, da filosofia seria algo não universal, mas singular. É o que parece se confirmar no seguinte trecho, se não perdemos de vista que Paulo é o teórico das leis gerais do evento:

Graça” significa que o pensamento não pode dar explicação integral da recolocação brutal, no sujeito, da via da vida, ou seja, da conjunção reencontrada do pensamento e do fazer. O pensamento somente pode ser libertado de sua impotência por meio de alguma coisa que exceda sua ordem. “Graça” nomeia o acontecimento como condição do pensamento ativo. (Badiou, 2009b, p. 99).

Isso suposto, claro, que a filosofia é pensamento (mas não só ela, já que a antifilosofia também o é, bem como ciência, amor, política e arte) e mais, ainda: pensamento ativo. Ou a filosofia é outro modo de pensamento?
Mas acho que a coisa se complica quando consideramos o outro lado, o destino. Nesse caso, se o conceitual é o universal, o que se mostra como condição dele aqui é o particular, as múltiplas subjetividades identitárias, as comunidades religiosas (o cristão, o muçulmano, o judeu, etc.), étnicas (o árabe, o brasileiro, o francês), de gênero (hetero, homo, trans), etc. A condição não é, aqui, como no caso da origem, condição de surgimento, mas condição de exercício do universal, o lugar em que ele pode se realizar enquanto força – o que Badiou chamará explicitamente de “situação” ou “mundo” (Badiou, 2009b, p. 115). Fico tentado a ver aqui o entre onde se dá o existir (Dasein) em Heidegger: o entre fundamento/origem (o ser, o não ente) e o mundo/sentido (o todo dos entes como um destino epocal de ser no qual o existir vive). O fato de que Heidegger a certa altura da vida passe a considerar o ser a partir de e enquanto evento (Ereignis) parece corroborar com isso. Por outro lado, seria preciso considerar se o existir que decide escolher a si mesmo em seu destino e o militante que se subjetiva desde o evento podem ser aproximados: parece-me que o instaurar-se de uma ruptura, o pôr as particularidades do mundo como o que não propriamente é a vida, entre outras coisas, depõem a favor; a finitude do Dasein, a crítica explícita de Badiou ao ser-para-a-morte (que, de minha parte, não sei se é lá muito justa) e a infinitude aberta pelo evento parecem depor contra (Badiou, 2009b, p. 96).
A compreensão de que é o mundo (das particularidades), onde todos estamos, o destino do universal do evento parece fornecer a fundamentação da crítica que Badiou faz à presença de categorias identitárias (do particular, pois) no processo político e a sua afirmação de que aquelas devem ser ausentadas deste enquanto processo de verdade (Badiou, 2009b, p. 19). Tais categorias seriam o anverso do universalismo abstrato do capitalismo (Badiou, 2009b, p. 18) e a aparência de não-equivalência daquelas seria necessária para que o equivaler geral de tudo como unidade de conta próprio a este universalismo seja um processo, e não um estado (Badiou, 2009b, p. 17) – se entendo bem, como “valores-de-uso” que no fundo contam apenas como quantidade de valor, e não por suas qualidades específicas, mas que precisam manter essa aparência de qualidades específicas que contam justamente para se tornarem diferentes valores-de-troca que encarnam diferentes valores, e assim manterem vivo o mercado universal e abstrato (às custas da morte da singularidade de trabalhadores (que trabalham mas não veem a si e se realizam no trabalho, que aparece assim como alheio) e de não-trabalhadores (que não trabalham e veem a si e se realizam (alienadamente) na extração do trabalho alheio)).
Pois bem: me parece que a posição de Badiou não é exatamente contra as lutas das minorias, por ex., mas pela edificação do Mesmo como um que atravessa todas as identidades e se dirige a cada singularidade enquanto tal e, assim, a todos. Esse atravessamento seria a verdade daquelas lutas, na medida em que estas procuram justamente, no fundo, que essa diferença, politicamente, não conte, isto é, que haja um real igualdade entre todos os singulares. Com isso, essas diferenças não desaparecem do mundo, mas se tornam (para o pensamento), na verdade, indiferentes – e, cabe frisar, sem ser dialeticamente “suprassumidas” no universal. O argumento de que o nazismo e seus resultados são ancorados em uma afirmação de uma particularidade identitária e não de um Mesmo me parecem perfeitamente coerentes nesse sentido.
O que parece estranho em tudo isso é Badiou considerar que “a abstração monetária capitalista é certamente uma singularidade” (2009b, p. 17). Tenderia a dizer que a perversidade do capitalismo é precisamente que a singularidade não conta para nada: pois a multiplicidade infinita, ilegal, incalculável e imprevisível que é a vida humana singular não pode ser reduzida a nenhuma conta e, justo por isso, é posta fora, esmagada, destruída ou cooptada onde quer que apareça – e quando cooptada, também deixa de ser o que é, na medida em que passa a ser contável. O que seria “uma singularidade que não se relaciona com outras singularidades”, que é, para Badiou, a especificidade dessa singularidade capitalista (Badiou, 2009b, p. 17)?. Isso é o que poderíamos, talvez, chamar de indivíduo (no sentido moderno de isolamento prévio, “atômico”, que está na base da fundação da sociedade civil para os contratualistas), mas não de singularidade. É a contingência do (anti)evento-capitalismo que o faz ser singular? Ele não seria um universal abstrato (Badiou, 2009b, p. 20) justo por recalcar o singular, talvez aquele mesmo a que deva sua origem? A busca de uma singularidade universal não iria justamente contra esse universal abstrato?
***
Como dito mais acima, Paulo não é filósofo (nem, nesse caso, artista, cientista, político) também porque o evento singular em que se baseia é uma fábula (a ressurreição) e não uma verdade real (Badiou, 2009b, p. 126). Badiou pretende separar a conexão singular formal (entre sujeito e lei) do conteúdo fabular do pensamento de Paulo. Ora, não parece um procedimento análogo ao pretendido por Marx com relação ao Hegel – extrair o núcleo racional da dialética do invólucro místico que lhe deu Hegel? A despeito do fato de que Badiou compreende Paulo como um pensamento antidialético e de que num caso trata-se de livrar-se do conteúdo (a ressurreição) pela forma (uma lei geral do evento) e no outro, inversamente, trata-se de livrar-se de uma forma (mística) em nome de conteúdo (racional), não se poderia dar um passo a frente e pensar esse procedimentos como homólogos? O fato de que nos dois casos estão em relação o mítico-fabular (a ficção?) e o racional-formal (a verdade?) não apontam nessa direção? Afinal, esses procedimentos são relacionáveis? Se sim ou se não, em que sentido?


1 Versão levemente modificada da primeira nota enviada ao CEII, em 26.08.13.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Falta e incapacidade

O limite mais tênue e precioso talvez seja o que (não) há entre a incapacidade de compreensão própria e a falta no outro.

Ser cristão é, em boa medida, considerar o impasse antes uma falta própria que uma incapacidade no outro.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A fila e o facebook



Pawel Kuczynski "Submarine"
In:https://www.facebook.com/222849284410325/photos/a.315950128433573.91004.222849284410325/660350560660193/?type=1&theater

Por vezes o facebook me parece (a vida transformada em) uma enorme e demorada fila (de mercado, de banco). As postagens são aquelas falas que a pessoa (carente) solta no ar, em voz alta e olhando pros lados, pra ver se fisga algum interlocutor incauto, ou nem tanto, que vai distraí-la do tédio ou da ansiedade da espera (tipo "tá calor, hem!?", "que demora", "por vezes o facebook..."). As curtidas são daquelas pessoas que até se distraem com essas falas, olham com aprovação pra quem falou, sorriem até, mas não ao ponto de entabular uma conversa. Os comentários são dos que, por desfastio ou interesse, dão corda a quem puxou papo — com mais ou menos entusiasmo, o que não raro depende do quanto eles querem ver suas próprias falas curtidas ou comentadas. Com o tempo, nos aproximamos de um ou outro companheiro de fila, às vezes preferindo gritar a quem está longe do que falar com o vizinho pentelho. Em todo caso, mesmo quando sabemos que não precisamos enfrentar essa fila (as contas podem ser pagas pela internet e nem sempre é preciso ir ao mercado no horário de pico), lá estamos nós de novo, dispostos a compartilhar nossas esperanças (de que a fila acabe...) ou, com maior frequência, (as distrações para) o cansaço e o tédio de cada dia.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Inexistenciais: de uma charge dx Laerte

Inexistenciais: de uma charge dx Laerte



Como se pode ver na charge acima, mais de dois mil anos depois da teoria dos incorporais, aparece, na era do niilismo, a teoria (e sobretudo a (des)política) dos inexistenciais -- que, diga-se de passagem, compartilha com aquela apenas o "in". Trata-se, no caso dos inexistenciais, de mais uma estratégia para aniquilar xs outrxs, e não só no nível do discurso.

Todavia, a aniquilação em cada caso é diversa.

Bierrenbach nega diretamente a existência dos palestinos enquanto povo -- donde não faria sentido falar em massacre do povo palestino, e o massacre pode seguir sem dó.

Feliciano não declara diretamente a inexistência dxs homossexuais, mas a inexistência do fenômeno que xs elimina enquanto grupo -- e, assim, já que esse fenômeno não existe, xs homossexuais podem parar de tentar se fazer de vítimas e sofrer e morrer caladxs.

Já no caso da Katia Abreu, a operação é um pouco mais complexa, suposto que ela possa ser interpretada nessa mesma linha: se não há latifúndio, não há razão para a reforma agrária (nos moldes como esta sempre foi pensada, ao menos) e não há latifundiário aniquilando índixs, quilombolas, pequenxs produtorxs, sem terra, etc. Donde, essxs também podem parar de se fazer de vítimas e sofrer e morrer caladxs.

Neste último caso, porém, pode-se perceber uma phina ironia. A frase de Katia Abreu não aniquila no discurso um povo (o palestino) que se trabalha para eliminar no real ou nega no discurso uma agressão (homofobia) perpetrada na prática (discursiva, inclusive), mas elimina do discurso uma realidade existente E defendida na prática (o latifúndio) com a finalidade de eliminar na realidade prática e no discurso os que são contra ela. Ora, a ironia está em que a eliminação prática, real do latifúndio pela revolução é justamente uma das pautas históricas da esquerda... e Katia teria sido escolhida Ministra da Agricultura para, segundo ela mesma, "revolucionar" a pasta. E já começou bem: eliminou o latifúndio... do discurso -- e, assim, deu (ao menos) o ponta pé inicial para eliminar os problemas dele decorrentes... da realidade. Qualquer semelhança desse lance com o "olha pra esquerda e toca pra direita"(1), comum numa eleição perto de vc, não parece ser mera coincidência.

Nota:
(1) Crédito do "olha pra esquerda e toca pra direita" para uma postagem no facebook do camarada Silvio Pedrosa.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Abaixo e à esquerda (1). Nas ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo.

Abaixo e à esquerda (1)
Nas ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo. 

Correlacionar as jornadas de junho-outubro de 2013 com os resultados das eleições de 2014 não é, como era de se esperar a essa altura, tocar em um tema novo. Quase todas as análises das eleições que foram feitas até agora, e em especial aquelas que se colocam ou pretendem colocar-se do lado esquerdo do espectro político, levaram em consideração as manifestações do ano passado. O interesse da série de notas que esse texto (espero, apenas) inaugura é contribuir para organizar e pensar o cenário político que se delineia nesse arco de um ano de lutas. Não há nenhuma pretensão de ser exaustivo; e é preciso ter sempre no horizonte que pensar é também, para dizer o mínimo, compreender o lugar do incompreensível e do impensável. Da direita para a esquerda, parece-me que se pode dizer mais ou menos o que se segue.

Houve a direita fascista, que veio às ruas nas maiores manifestações (mas, é preciso sempre lembrá-lo, não as monopolizou), e talvez tenha encontrado algum eco na eleição de quadros como Bolsonaro (RJ) e Heinze (RS), bem como em discursos como de Levy Fidelix. Digo “talvez” porque o termo “fascismo” aqui comporta (ao menos) a seguinte característica: a “escolha” de um inimigo como causa fantasmática de um problema, em contraposição ao qual, com a finalidade de aniquilar fisicamente tal inimigo, se propaga uma unidade do corpo social que se sobrepõe às e se esquece das fissuras socioeconômicas, das desigualdades da comunidade em questão.

Nas ruas, inimigos eram os políticos e partidos políticos, ditos (quase que essencialmente) corruptos e a nação brasileira deveria se unir para eliminá-los (se fisicamente, isso nem sempre era claro). Nas urnas, inimigos eram não só estes, mas também (e sobretudo) aqueles contra os quais a família (heteronormativa e patriarcal) brasileira deveria se unir: gays, lésbicas, transexuais, transgêneros (para quem se prega, se não a morte física, o internamento para “tratamento psicológico”, além do inferno durante e depois da vida, claro), assim como defensores do aborto em geral (que, até onde vi, não estão na lista dos a serem aniquilados, mas vai saber...) e, não raro, indígenas, quilombolas e “bandidos” (corporificado no velho lema, que veio à rua quase literalmente nos justiçamentos e segue subindo as favelas com bem mais literalidade (e letalidade), cujo alvo preferencial, se não exclusivo, são negros pobres: “bandido bom é bandido morto”).

Ora, como no primeiro caso os políticos são “parte do problema”, é possível imaginar que parte dos votos brancos, nulos e das abstenções (somadas, cerca de 27% do eleitorado) possa estar ligada aos fascistas da rua. Mas como, por outro lado, esse problema pode ser compreendido como um problema dos políticos e dos partidos políticos em questão, mas não do sistema político (e muito menos da democracia representativa) enquanto tal, é possível supor que esse eleitorado possa ter visto na eleição de políticos conservadores com laivos (e não poucos) de fascismo.

Todavia, não poucos preferem atribuir a eleição da maior bancada conservadora em 50 anos a um grupo mais amplo e mais difuso, que talvez constituía a maioria nas maiores manifestações de 2013. Mais ou menos identificados pela classificação antropológica precisa “coxinhas”, tal grupo seria formado por pessoas “menos acostumadas” com a lida política cotidiana, que se limitavam a comentar assuntos desse gênero entre amigxs e/ou nas redes sociais. O horizonte dessas intervenções é em geral o do senso comum mais ou menos difundido e reforçado, se não mesmo em parte criado, pelo oligopólio midiático. Tal senso comum se compõe de uma rejeição à política que vai do vago desinteresse, passando e confundindo-se com o papo de que “política não se discute” (“fundado” na infame analogia entre política, futebol e religião) até (confundir-se com) a raiva em relação aos políticos. Nisso, a referida rejeição costuma se valer, de maneira mais ou menos inconsciente, de (falsas, mas compreensíveis) indistinções entre política e políticos, entre política e eleição, entre política e Estado. Não raro, todo esse quadro é temperado com um apelo ao nacionalismo (da pátria de chuteiras, do samba, do futebol, da mulata, do povo alegre), em nome do qual todos deveriam se unir contra a corrupção (culpa exclusiva dos políticos corruptos) e por um Brasil Melhor, com mais saúde e educação (pautas que, assim em abstrato, são mesmo consensuais). Do ponto de vista socioeconômico, tais “coxinhas” estariam na “classe média”, sobretudo a “nova”, incluída no consumo nos anos do governo do PT. Do ponto de vista etário, seriam em sua grande maioria jovens.

Pois bem: é esse caldo ou, antes, esse salgado, que teria formado (predominantemente) as manifestações. Apesar de incluídos nos últimos anos, ou justamente por isso (isto é, pela consciência de que poderiam/deveriam querer mais), os coxinhas queriam mais e foram para as ruas com inúmeras pautas, lutar “contra tudo que está aí”. Repressão à parte, a falta de articulação política consistente, contudo, teria feito com que as manifestações de 2014, durante a Copa, não tivessem o mesmo fôlego. Pela mesma razão, ou por uma semelhante, o despertar do gigante teria resultado no sono das urnas, com o pesadelo da eleição de uma grande bancada conservadora, sobretudo em termos de direitos das (ditas) minorias (sexuais, de gênero, raciais), mas também no que diz respeito ao fundamentalismo religioso (evangélico e católico), à defesa aberta da ditadura, de medidas de segurança cada vez mais punitivistas e militarizantes, da volta e/ou ampliação de uma política econômica neoliberal, enfim, de um Estado inchado do ponto de vista da repressão e da criminalização dos movimentos sociais, das (ditas) minorias e da pobreza, ao mesmo tempo que enxuto no que se refere aos direitos, aos investimentos em serviços públicos, à intervenção no mercado.

Os principais responsáveis por esse quadro seriam, pois, os coxinhas. Eles são o espantalho, o sujeito-suposto-fazer-e-falar-merda dos vários espectros do político – em especial o (autoproclamado) de esquerda.

Acontece que a conta aqui, a meu ver fecha rápido demais. A deriva à direita do parlamento brasileiro não se relacionaria com a reação ao avanço, mesmo aos trancos e barrancos, da luta por direitos do movimento negro, LGBT, feminista, de favelas e periferias. Muito menos teria a ver com os erros da esquerda – em especial com as concessões e ações da esquerda no poder, ações e concessões que não raro põem em dúvida o caráter mesmo de esquerda desse poder (suposto que há poder ou, antes, governo de esquerda). A autocrítica não existe, ou é rara, ou sempre vem acompanhada de um “mas ainda assim é menos pior que...”.

Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek lembra que devemos tomar cuidado para não fazer o jogo do inimigo a ponto de acabarmos defendendo apenas uma cópia negativa do que ele quer – quando a tarefa é modificar o horizonte mesmo de coordenadas (da escolha, do desejo). Não é isso que acontece quando um Partido dos Trabalhadores, suposto que consiga se justificar no poder (e não meramente pelo poder), só possa fazê-lo na medida em que conserva(ria) certas conquistas diante de um governo pior – e não por propor novos patamares de avanço, quando as ruas abrem/abriram o horizonte para isso?

No lugar de questões desse gênero, da rara autocrítica, a “altercrítica” está por toda parte, com ou sem o argumento – ou desculpa – de que o momento tático não é esse, o da decisão eleitoral – “argumento”, para os setores que se dispuseram a essa autocrítica em outros momentos; “desculpa”, se não para a maioria, pelo menos para a ala mais poderosa da esquerda (?) no governo, que por palavras e (sobretudo) atos, continua crendo estar no rumo certo. Coxinha, claro, são os outros.


Numa próxima nota, pretendo pensar/mover a coisa mais à esquerda – o que significa, se o nome “esquerda” ainda pode nos servir de alguma coisa, movê-lo mais para baixo.

Publicado originalmente em: http://ideiaeideologia.com/nota11-10062014-rj-i/

terça-feira, 6 de maio de 2014

Culpa e resposabilidade

Culpa e Responsabilidade

(...) Se entendi bem, François, a diferença que vc faz entre responsabilidade existencial e culpa está no fato de que a primeira ideia leva em conta o fato de que toda escolha individual (em uma comunidade) envolve os outros e, nisso, as escolhas que outros fazem, além de uma série de outros processos que independem da vontade individual, de modo que podemos dizer que respondemos pela obra como um todo, embora não possamos dizer que somos "causa", ou única causa, dela. Deste lado, o do ser-causa, estaria justamente a culpa, isto é, a ideia de que se pode atribuir às escolhas de um indivíduo, e quase que somente a elas, o suceder de um certo processo, o caminho de uma instituição, etc.

Se esse quadro é faz justiça às suas ideias, me parecem que podem se seguir algumas consequências mais ou menos diretas (ou se possa fazer algumas ligações mais ou menos explícitas) - e gostaria de saber o que vc acha a respeito, ainda mais porque trata-se de um tema que também me interessa ultimamente (e não só). Em primeiro lugar, parece que podemos ter uma espécie de "heroísmo mitigado" (ou finito, ou não (semi-)divino), no sentido de que reconheço que respondo pelo todo da obra do qual participo, embora saiba que não sou a única causa dele. Talvez pudéssemos dizer que temos aí um heroísmo verdadeiramente trágico, na medida em que respondo também pelo que não escolhi, ou pelo que só tacitamente escolhi na forma de vida em que me engajei.

Em segundo lugar, parece que temos, no limite e quiçá em uma versão mais fraca, o existencialismo que Sartre parece defender no "Existencialismo é um humanismo" (que, por sua vez, se vê como uma espécie de retomada (atéia) do imperativo categórico kantiano): pois, no limite, somos responsáveis pelo mundo mesmo, como um todo - embora, uma vez mais, não possamos nos considerar causa daquilo que se segue às nossas ações. Nesse sentido, talvez mesmo o cara que se isole numa ilha deserta, isso ainda é um modo de lidar com essa responsabilidade - e não simplesmente de se livrar dela absolutamente. Por isso mesmo, o adendo entre parênteses que fiz no primeiro parágrafo "(em comunidade)" seja desnecessário: a não ser, talvez, que pudéssemos pensar em um humano que não tivesse, desde o princípio da sua vida, nenhum contato com outros seres humanos. Além de isso gerar a célebre questão sobre se e em que medida um tal ente seria propriamente humano (questão que talvez, do ponto de vista de Heidegger, deva ser respondida positivamente, na medida em que somos sobretudo nossa possibilidade), ainda assim talvez se pudesse falar que ele responde por aquilo com que se relaciona... 

Daí poderia surgir um terceiro ponto: em que medida essa caracterização de uma responsabilidade existencial seria antes uma ética ou mesmo uma posição política (ontologicamente fundamentada) do que algo que pudesse ser contido nos limites da ontologia? No seguinte sentido: não só se está dizendo que o ser humano pode existir segundo uma narrativa existencial que se paute pela noção de responsabilidade e não pela de culpa, mas se está advogando que isso é melhor (ética) com base em uma compreensão de como as coisas são (ontologia). Mais, ainda: ao se colocar isso como uma posição que possa fundar o comportamento de singulares nos âmbitos em que se decide o destino de uma comunidade como um todo, tal posição é política. (O que, diga-se de passagem, parece querer defender uma posição radicalmente democrática, na medida em que na sua posição advoga pela responsabilidade de cada um com o todo e pelo fato de o diálogo precisa ser, até o limite (e além, hehehe), privilegiado em relação à violência). Nesse caso, as condições para que um ser humano pudesse compreender, "tornar-se consciente" de que esses são modos de lidar com sua própria vida seriam totalmente relevantes, não? No caso de uma "mera" ontologia, o cara bem que poderia viver com responsabilidade existencial sem nunca ter formulado para si essa decisão tácita da sua vida. E com "formular para si" não quero dizer formular filosoficamente no sentido estrito, mas entender que suas decisões são importantes, mas não determinam uma ação; que ele é responsável pelo mundo do qual participa, etc.

Outra questão seria a de tomar cuidado (ou não?) para não compreender a diferença entre responsabilidade existencial e culpa em uma chave (ontológica) naturalística, em que a diferença entre as duas seria a diferença entre causa a qual se possa atribuir o fenômeno como um todo (necessária e suficiente, pois) e causa que contribuiria (ou não) para um determinado fenômeno (algo que seria contingentemente causa de algo). Esta última noção de causa já parece afugentar o determinismo; mas não basta isso: é preciso ver que o que está em jogo não é determinar os eventos em uma realidade tal como é em si mesma e assim conhecê-lo; mas sim, mais fundamentalmente, pensar em possíveis modos de vida - em possíveis narrativas existenciais, como vc colocou. Mas talvez pudéssemos avançar mais um passo: aquele tipo de aproximação ("naturalístico") só faz sentido no interior de uma determinada narrativa existencial - daí esta, e a existência como o que nela se configura, ser o mais fundamental, no sentido de Heidegger.

Uma última questão que me ocorre é a seguinte: poderíamos distinguir graus, níveis e/ou modos de responsabilidade, não? Por exemplo: apoiar o Blac Block via facebook implica em uma responsabilidade, ao menos, diversa da responsabilidade daqueles que vão para a rua. A tendência comum, acho, seria dizer que estes têm mais responsabilidade é quem dispôs de sua própria vida para ir lá lutar lá na rua. Sob outra perspectiva, todavia, poder-se-ia dizer que quem tem mais responsabilidade é quem apenas curte: pois abriu mão de um bom espaço de escolha individual (que poderia ter ao participar efetivamente do movimento) e o legou a outros - tornando-se, assim, ainda mais responsável pelo que esses outros fazem.

Outro exemplo menos controverso, talvez: vc seria mais responsável pelo judiciário do que eu, na medida em que decidiu (ou, de alguma maneira, chegou na sua vida à decisão) de ligar sua vida a isso, enquanto eu, não; e isso mesmo se, talvez, as circunstâncias da vida me levem a me valer do judiciário, etc. (Há que se avaliar quais circunstâncias, claro; mas me refiro àquelas que estão mais longe de um engajamento decidido em determinada forma de vida). 

Mas, ainda dentro dessa questão, surge o seguinte: suposto que possamos distinguir graus de responsabilidade e suposto que, ao que parece, qualquer processo em que nos metamos na vida não depende só de nós (da nossa decisão individual, ao menos), haveria culpa do ponto de vista existencial? Política e juridicamente poderíamos dizer que o dono de uma empresa de ônibus e o prefeito do Rio têm culpa no péssimo Estado do transporte público; mas na medida em que, a rigor, seria de uma naturalização perversa atribuir a eles a causa disso e, assim, a culpa, não seríamos levados a dizer que, do ponto de vista (ético-)existencial mais radical, a culpa não existe? Não estaria aí (e permita-me algo que pode soar como carolice e pieguice), de um ponto de vista existencial e não religioso (ao menos no sentido comum de religião), a porta aberta para a ideia que vem através do Cristo, segundo a qual todos somos redimidos pela sua morte, de que não devemos julgar (condenar, o que não significa que não podemos emitir pareceres sobre os outros e julgá-los no campo abstrato da política) e que o amor é, em última instância, o modo pelo qual podemos nos relacionar com as pessoas "concretas" em sua singularidade? Qual seria a relação entre este amor e aquele que vc mencionou em sua primeira resposta ao Luciano? (...)

Setembro de 2013

Para o texto original e a discussão completa, cf: https://www.facebook.com/notes/f%C3%A1bio-fran%C3%A7ois-fonseca/culpa-x-responsabilidade/10151579334912187