quarta-feira, 19 de junho de 2013

A pauta de reivindicações e a reivindicação da pauta

A pauta de reivindicações e a reivindicação da pauta

"Primeiro eles te ignoram, depois riem de você, 
depois brigam, e então você vence." 
(Frase atribuída a Mahatma Gandhi) 

As manifestações que vêm acontecendo no Brasil nas últimas semanas surgiram em torno de uma pauta simples, direta, concreta: a revogação do aumento do preço das passagens do transporte público, aumento que aconteceu em várias cidades do país. Tanto quanto eu saiba, a única cidade em que tais manifestações foram capitaneadas por um movimento voltado especificamente para a questão do transporte público no Brasil e que propõe uma solução precisa para esse problema é São Paulo: o movimento é o Movimento Passe Livre (MPL); a solução precisa, o projeto Tarifa Zero.

Curioso que ainda assim há quem diga que o movimento não tem uma pauta clara. “Há quem diga” é muita bondade: a grande mídia quis fazer parecer que é assim, tentativa que foi muito bem exemplificada na primeira intervenção de Arnaldo Jabor sobre o tema. Por sinal, o comportamento dessa mídia parece, a primeira vista, fazer valer a famosa frase de Gandhi: primeiro, tentaram ignorar as manifestações, colocando-as, como é de praxe, na parte dos seus respectivos jornais dedicada ao trânsito; depois, com Jabor, tentaram rir do movimento; em seguida, com a benção de editorais de grandes jornais, a repressão policial pôde correr solta; por fim, com o feitiço virando contra o feiticeiro, quando vários de seus próprios jornalistas foram atingidos pela violência policial, a mídia passou a apoiar as manifestações, com direito a retratação do Jabor e mudança de posição ao vivo do Datena – e aí, da parte dessas, não faltou quem dissesse: vencemos... Mas vencemos, mesmo?

Não obstante a clareza “didática” que se pode alcançar ao interpretar o comportamento da mídia a partir da frase de Gandhi, tal interpretação certamente é limitada. Em primeiro lugar, a sequência de mudanças de comportamento da mídia certamente não é tão rígida e estanque, mas muito complexa e repleta de idas e vindas. Em particular, há que se lembrar que a violência policial em nome de uma defesa de patrimônio colocada muitas vezes acima das pessoas e de um intocável direito de ir e vir que vale sobretudo para os carros particulares que lotam o espaço público marcou desde o início o comportamento do poder público com relação às manifestações (sobretudo em São Paulo e no Rio) – e que tal comportamento foi mais ou menos explicitamente apoiado pela mídia desde o princípio.

Mas o principal limite a ser enfocado aqui diz respeito ao final da frase. Com efeito, o apoio da mídia às manifestações certamente não é uma derrota, mas é, no mínimo, uma vitória ambígua e perigosa: se, por um lado, tal apoio representa o reconhecimento inegável da força das massas, por outro, não se pode esquecer que ele vem acompanhado de um discurso que busca dar a pauta do movimento e, com isso, tirar-lhe a força e escondê-lo no mesmo movimento em que o mostra – ou melhor, parece mostrá-lo. As estratégias nesse sentido são várias: ora se tenta dizer que a manifestação é “contra tudo que está aí”, o que leva a um esvaziamento de pautas concretas e imediatamente atingíveis; ora se diz que é “pelo próprio direito de se manifestar”, o que leva ao risco de tomar as manifestações como algo que se esgote no próprio movimento de se manifestar e que não espera nenhuma resposta efetiva do poder público; ora, enfim, tentam fazer com que surfem na onda de manifestações pautas tradicionalmente conservadoras como a antipolítica (manifesta sobretudo no antipartidarismo), o oposição aos programas de transferência de renda, a redução dos impostos, o nacionalismo exacerbado e a “moralização” da política (pauta esta, diga-se de passagem, muitas vezes encampada por quadros da esquerda) e outras, no mínimo, controversas, como a oposição à PEC 37.

Certamente essas tentativas não deixam de ter respaldo na composição complexa que as manifestações foram tomando (e, quiçá, em parte já tinham ab initio) na medida em que cresciam e outros grupos se integravam ao movimento. Em comum, uma espécie de insatisfação de fundo, mas que se desdobrava em uma miríade de reivindicações concretas (ou nem tanto), por vezes contraditórias, dentre elas aquelas mencionadas no último parágrafo. Os relatos de militantes de partidos de esquerda tendo suas bandeiras retiradas e sendo espancados mostram com clareza que há elementos de cunho reacionário e fascista presentes nas manifestações. O quanto a mídia é “causa” ou “expressão” de algumas dessas posturas é quase com certeza impossível de dizer – e provavelmente ocioso. Que ela fomenta pautas conservadores, creio que ninguém tem dúvida. Isso posto, o ponto é: como fazer para que as manifestações não virem, como já temem alguns (e, a meu ver, não sem certa razão), uma Marcha da Família com Deus pela Liberdade?

Um ótimo caminho me parece ser a definição clara de uma pauta de reivindicações, de preferência em plenárias e fóruns democráticos e abertos a todos, em cada cidade. Creio que ao menos uma será consensual: justo aquela que foi o estopim das mobilizações – a revogação do aumento das passagens. Com relação à definição desta pauta, talvez tais plenárias e fóruns sejam ociosos; mas, se os diversos movimentos conseguirem unificar-se em torno dela, certamente estes e aquelas servirão para aprofundá-la e pensar outras iniciativas que levem a uma nova lógica no transporte público – e, concomitantemente, a uma nova compreensão do que significa o direito de ir e vir. Dessa maneira, o movimento reivindica para si o que é direito seu e o que é essencial para que ele não seja capturado pelo discurso midiático: definir suas próprias pautas. E se a esquerda não quer, como se diz comumente, “perder o bonde da história”, trata-se não de tentar orientar de cima a massa, mas de, como parte desta, disputar para que ele não tome um rumo reacionário – e brigar para que a bandeira que iniciou o movimento, uma bandeira claramente favorável à classe trabalhadora, seja sua bandeira principal e se concretize, é um maneira de dar sentido claro à luta.


Obviamente, isso não implica que a pauta não possa ser ampliada, não implica que o movimento não possa avançar em outras pautas “progressistas”: o encanto deste é também o caráter de abertura de futuro, o caráter de não se deixar capturar em categorias do passado, caráter que as manifestações, sob muitos aspectos, parecem ter. Mas essas “jornadas de junho” já deixariam um grande legado se conseguirem fazer com que o problema da mobilidade urbana e a necessidade de uma nova compreensão do direito de ir e vir entre definitivamente na pauta da política brasileira. Se isso acontecer, talvez possamos dizer sem medo que vencemos - uma batalha.