A
pauta de reivindicações e a reivindicação da pauta
"Primeiro
eles te ignoram, depois riem de você,
depois brigam, e então você
vence."
(Frase atribuída a Mahatma Gandhi)
(Frase atribuída a Mahatma Gandhi)
As
manifestações que vêm acontecendo no Brasil nas últimas semanas
surgiram em torno de uma pauta simples, direta, concreta: a revogação
do aumento do preço das passagens do transporte público, aumento que aconteceu em várias
cidades do país. Tanto quanto eu saiba, a única cidade em que tais
manifestações foram capitaneadas por um movimento voltado
especificamente para a questão do transporte público no Brasil e
que propõe uma solução precisa para esse problema é São Paulo: o
movimento é o Movimento Passe Livre (MPL); a solução precisa, o
projeto Tarifa Zero.
Curioso
que ainda assim há quem diga que o movimento não tem uma pauta
clara. “Há quem diga” é muita bondade: a grande mídia quis
fazer parecer que é assim, tentativa que foi muito bem exemplificada
na primeira intervenção de Arnaldo Jabor sobre o tema. Por sinal, o
comportamento dessa mídia parece, a primeira vista, fazer valer a
famosa frase de Gandhi: primeiro, tentaram ignorar as manifestações,
colocando-as, como é de praxe, na parte dos seus respectivos jornais
dedicada ao trânsito; depois, com Jabor, tentaram rir do movimento;
em seguida, com a benção de editorais de grandes jornais, a
repressão policial pôde correr solta; por fim, com o feitiço
virando contra o feiticeiro, quando vários de seus próprios
jornalistas foram atingidos pela violência policial, a mídia passou
a apoiar as manifestações, com direito a retratação do Jabor e
mudança de posição ao vivo do Datena – e aí, da parte dessas,
não faltou quem dissesse: vencemos... Mas vencemos, mesmo?
Não
obstante a clareza “didática” que se pode alcançar ao
interpretar o comportamento da mídia a partir da frase de Gandhi,
tal interpretação certamente é limitada. Em primeiro lugar, a
sequência de mudanças de comportamento da mídia certamente não é
tão rígida e estanque, mas muito complexa e repleta de idas e
vindas. Em particular, há que se lembrar que a violência policial
em nome de uma defesa de patrimônio colocada muitas vezes acima das
pessoas e de um intocável direito de ir e vir que vale sobretudo
para os carros particulares que lotam o espaço público marcou desde
o início o comportamento do poder público com relação às
manifestações (sobretudo em São Paulo e no Rio) – e que tal
comportamento foi mais ou menos explicitamente apoiado pela mídia
desde o princípio.
Mas
o principal limite a ser enfocado aqui diz respeito ao final da
frase. Com efeito, o apoio da mídia às manifestações certamente
não é uma derrota, mas é, no mínimo, uma vitória ambígua e
perigosa: se, por um lado, tal apoio representa o reconhecimento
inegável da força das massas, por outro, não se pode esquecer que
ele vem acompanhado de um discurso que busca dar a pauta do movimento
e, com isso, tirar-lhe a força e escondê-lo no mesmo movimento em
que o mostra – ou melhor, parece mostrá-lo. As estratégias
nesse sentido são várias: ora se tenta dizer que a manifestação é
“contra tudo que está aí”, o que leva a um esvaziamento de
pautas concretas e imediatamente atingíveis; ora se diz que é “pelo
próprio direito de se manifestar”, o que leva ao risco de tomar as
manifestações como algo que se esgote no próprio movimento de se
manifestar e que não espera nenhuma resposta efetiva do poder
público; ora, enfim, tentam fazer com que surfem na onda de
manifestações pautas tradicionalmente conservadoras como a
antipolítica (manifesta sobretudo no antipartidarismo), o oposição
aos programas de transferência de renda, a redução dos impostos, o
nacionalismo exacerbado e a “moralização” da política (pauta
esta, diga-se de passagem, muitas vezes encampada por quadros da
esquerda) e outras, no mínimo, controversas, como a oposição à
PEC 37.
Certamente
essas tentativas não deixam de ter respaldo na composição complexa
que as manifestações foram tomando (e, quiçá, em parte já tinham
ab initio) na medida em que cresciam e outros grupos se
integravam ao movimento. Em comum, uma espécie de insatisfação de
fundo, mas que se desdobrava em uma miríade de reivindicações
concretas (ou nem tanto), por vezes contraditórias, dentre elas
aquelas mencionadas no último parágrafo. Os relatos de militantes
de partidos de esquerda tendo suas bandeiras retiradas e sendo
espancados mostram com clareza que há elementos de cunho reacionário
e fascista presentes nas manifestações. O quanto a mídia é
“causa” ou “expressão” de algumas dessas posturas é quase
com certeza impossível de dizer – e provavelmente ocioso. Que ela
fomenta pautas conservadores, creio que ninguém tem dúvida. Isso
posto, o ponto é: como fazer para que as manifestações não virem,
como já temem alguns (e, a meu ver, não sem certa razão), uma
Marcha da Família com Deus pela Liberdade?
Um ótimo caminho me parece ser a definição clara de uma pauta de
reivindicações, de preferência em plenárias e fóruns
democráticos e abertos a todos, em cada cidade. Creio que ao menos
uma será consensual: justo aquela que foi o estopim das mobilizações
– a revogação do aumento das passagens. Com relação à
definição desta pauta, talvez tais plenárias e fóruns sejam ociosos; mas, se
os diversos movimentos conseguirem unificar-se em torno dela,
certamente estes e aquelas servirão para aprofundá-la e pensar
outras iniciativas que levem a uma nova lógica no transporte público
– e, concomitantemente, a uma nova compreensão do que significa o
direito de ir e vir. Dessa
maneira, o movimento reivindica para si o que é direito seu e o que
é essencial para que ele não seja capturado pelo discurso
midiático: definir suas próprias pautas. E se a esquerda não
quer, como se diz comumente, “perder o bonde da história”,
trata-se não de tentar orientar de cima a massa, mas de, como parte
desta, disputar para que ele não tome um rumo reacionário – e
brigar para que a bandeira que iniciou o movimento, uma bandeira
claramente favorável à classe trabalhadora, seja sua bandeira
principal e se concretize, é um maneira de dar sentido claro à luta.
Obviamente, isso não implica que a pauta não possa ser ampliada, não implica que o
movimento não possa avançar em outras pautas “progressistas”: o encanto deste é também o caráter de abertura de futuro, o caráter de não se
deixar capturar em categorias do passado, caráter que as manifestações, sob muitos
aspectos, parecem ter. Mas essas “jornadas de junho” já deixariam
um grande legado se conseguirem fazer com que o problema da
mobilidade urbana e a necessidade de uma nova compreensão do direito
de ir e vir entre definitivamente na pauta da política brasileira. Se isso acontecer, talvez possamos dizer sem medo que vencemos - uma batalha.