sábado, 21 de dezembro de 2013

Entre as jornadas de junho e as lutas de outubro: esboço para uma narrativa em aberto

Em tempo de retrospectivas, o texto que segue é uma tentativa, ainda que franciscana e provisória, de contribuir para a construção da narrativa em aberto do que foram e tem sido as manifestações que tomaram conta do Brasil entre os meses de junho e outubro deste ano, tentando assinalar aqui e ali as perspectivas de futuro presentes nesse(s) acontecimento(s). Foi (quase) inevitável que a ênfase recaísse, em mais de um lugar, nos protestos que pude mal ou bem acompanhar mais de perto, isto é, nos que aconteceram no Rio de Janeiro. Isso não implica – espero – que mesmo o que é dito em referência explícita ao Rio não possa ajudar a pensar o que tem acontecido em várias partes do país e, a partir disso, ajudar a projetar os próximos passos. Em outras palavras, trata-se de apresentar uma retrospectiva que possa servir não apenas para lembrar o que passou, mas para trazer à luz algo do que, no que passou, pode abrir outros, diversos horizontes ao porvir.

O estopim das manifestações foi o anúncio do aumento das passagens do transporte público. Em pouco tempo, sobretudo através de eventos convocados via facebook e twiter, se seguiram alguns dias de ruas ocupadas por multidões. Essas mesmas redes sociais (e quiçá outras) serviram aos mais diferentes fins comunicativos antes, durante e depois de cada protesto. De fato, foram úteis não só para discutir e convocar os eventos, mas também para potenciá-los, (re)organizá-los e repercuti-los em tempo real, bem como para repensá-los depois de acontecidos, visando a organização dos próximos passos.

Não foram poucas as mídias “fora do eixo” que surgiram nesse processo, e não foi pequena a surpresa de alguns ao constatar que o deslocamento do eixo, em alguns desses casos, servia não à mudança, mas à manutenção do capitalismo. Mais, ainda: não só à manutenção, mas talvez à potencialização do capitalismo: um capitalismo 2.0., em que o trabalho intelectual dos sujeitos é arregimentado 24 horas por dia em coletivos para a produção e agenciamento de eventos culturais em uma rede que cada vez mais amplia seus fios, aumentando, com isso, seu capital humano, seu campo de extração de mais-valia (econômico-cultural), o que propicia cada vez mais créditos (econômico-culturais) para ganhar editais do governo. Em tais coletivos, aderir a uma nova forma de vida em que a individualidade (por demais capitalista…) se perde e “viver para produzir (‘cultura’)” parecem ser componentes de uma nova ideologia (do capital) disfarçada de novo modo de organização do trabalho e novo modo de viver. Um novo que, todavia, no parecer de muitos, se assemelha a uma reedição, no século XXI, de uma espécie de “servidão voluntária” e que, além disso, parece se adaptar muito bem, se não mesmo “parasitar” as “brechas” deixadas pelo que seria o eixo dominante e pelo Estado que corresponderia a este.

Por outro lado, os efeitos das manifestações e das novas mídias a ela ligadas sobre a mídia tradicional, corporativa parecem não ter sido pequenos, pelo menos no calor dos acontecimentos. Num primeiro momento, a mídia corporativa tentou esvaziar e/ou deslegitimar os protestos, dando-lhes uma cobertura muito limitada e/ou colocando-os sob a rubrica dos problemas de trânsito “causados” pelo grande número de pessoas nas ruas. Num segundo momento, percebendo que as manifestações seguiam crescendo exponencialmente, a mesma mídia mudou o discurso: passou a se dizer favorável aos protestos como parte da “festa da democracia”. Ao mesmo tempo, contudo, colocava em marcha uma segunda estratégia para esvaziá-los do poder de mudança que poderiam ter. Tratava-se de por em primeiro plano as bandeiras mais “classe média sofre”, ou mais “coxinha”. Este último termo, uma injusta degradação do nobre salgado, ganhou o Brasil como designação pejorativa daqueles que, em geral enrolados em uma bandeira do Brasil, sustentavam insossas “reivindicações” como sobretudo o “Fim da corrupção”, mas também “Mais saúde, mais educação, mas menos Estado e menos impostos”. “Insossas” seja porque mantinha a raiz dos problemas inquestionada, seja porque se perdem em lemas muito gerais e, por isso, aceitáveis inclusive por aqueles a quem a crítica estaria dirigida. A corrupção, por exemplo, seria um problema (apenas) moral, fruto de um desvio de caráter de um político - e não (sobretudo) um sintoma de um problema sistêmico de caráter socioeconômico ou, pelo menos, um desvio cuja raiz está nos interesses econômicos que corrompem ao menos tanto quanto no "mal caráter" que se deixa corromper. Esse mesmo "mal caráter", aliás, costuma levantar sem nenhum problema, e talvez sem traço de cinismo, a bandeira da "Educação de qualidade" ou da "Saúde de qualidade". Nesse sentido, a questão está não no apoiar estes lemas gerais, mas na disputa do estofo, do sentido, do processo que se põe em marcha quando estes lemas estão em jogo.

Mais ou menos cientes dessa estratégia de manipulação por parte da mídia corporativa; ou, ao menos, cientes das críticas standard e de fácil circulação (e nem por isso menos verdadeiras) em aulas de história, sociologia, geografia e filosofia sobre a manipulação e o papel de manutenção da “ordem dominante”, do “sistema” cumpridos seja pela “indústria cultural” em geral, seja pela Globo (e quejandos) em particular, não foram raros os episódios em que a mídia corporativa “sofreu” escrachos e foi “convidada a se retirar” de mais de um protesto. Algumas vezes, a mídia corporativa chegou a renunciar ao emblema da empresa nos seus microfones para que os seus jornalistas pudessem seguir transmitindo in loco; mas, seja pelos rostos, seja pelas posturas de sempre, estes acabavam reconhecidos. O que passou a predominar então foram as tomadas aéreas, distantes das manifestações – uma metáfora bastante eloquente da “real” relação da mídia corporativa com o potencial de transformação ali presente. Isso não aconteceu, claro, sem que essa mesma mídia reclamasse do cerceamento da “liberdade de expressão”. 

Em um terceiro momento, por fim, mais ou menos contemporâneo ao segundo, com a eclosão da violência nas manifestações, a mídia corporativa passou a operar a distinção entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”. Tal operação possibilitou que ela, a um tempo, apoiasse as pautas coxinhas e seus representantes nas manifestações, apoiasse a repressão policial e condenasse a resistência e as táticas de enfrentamento de certos grupos de manifestantes (protagonizados pelos chamados Black Blocs), procurando minar as leituras que poderiam ver na violência um potencial transformador, uma arma de crítica aos símbolos do poder econômico e político dominantes ou, ao menos, um meio legítimo de resistência de classe à truculência do poder constituído.

Se, por um lado, a estratégia da mídia corporativa se baseava em anseios de pessoas que estavam efetivamente nas ruas, por outro, parece ter dado um gás ao clima antipolítica e nacionalista que já aparecia nas ruas. O fato é que não foram poucos os episódios de militantes de partido de esquerda ou nem tanto (PSOL, PSTU, PCB, PT, etc.) que tiveram os materiais com seus emblemas rasgados ou chegaram a ser agredidos fisicamente, sobretudo no segundo momento mencionado acima. Os agressores, por sua vez, iam desde descontentes coxinhas bombados de classe média, que odeia sem distinção tudo que se relaciona a política, até, ao que parece, seguidores mais ou menos “conscientes” de ideologias fascistas, passando por policiais disfarçados. Bem entendido, a violência contida em tais episódios não implica que os problemas com os meios (tradicionais) de representação que aparecem aí não tenham um conteúdo de verdade. Mais, ainda: a própria violência pode ser lida como um sintoma deste conteúdo.

Todavia, a violência não se deu apenas entre manifestantes, mas sobretudo da força policial com relação aos manifestantes. Não foram poucos os episódios de truculência, arbitrariedade, desrespeito aos direitos humanos e à democracia – ou, se quisermos, episódios que mostravam claramente o Estado “democrático de direito” (ou seria de direita?) como órgão opressor a serviço dos interesses do capital e da apropriação da cidade por esses interesses, muitas vezes em função da exploração econômica de grandes eventos (a Copa e as Olimpíadas) - eventos que são especialmente lucrativos para a indústria do turismo, do entretenimento e da construção civil, bem como para a especulação imobiliária (mas não só). Tudo isso com o beneplácito dos governos municipal, estadual e federal (este último, não custa lembrar, capitaneado por aquele que provavelmente foi o principal partido de esquerda da história do Brasil).


18.06.2013 - Centro do Rio de Janeiro (Foto: Fabio Motta, Estadão)

Em tais episódios, ficou claro também o caráter classista e racial da repressão estatal: nas manifestações nas áreas “mais nobres” da cidade, a bala de borracha machuca e até cega, mas não mata, e só comparece quando há algum tipo de protesto; nas zonas mais pobres, nas periferias em geral, as balas estão presentes havendo ou não manifestação, e não são de borracha. Mas nos dois casos tende a comparecer o mesmo alvo preferencial: o preto pobre. A repressão trata diferentemente quem ela visa reprimir. Os presos políticos foram quase todos soltos, exceto um morador de rua, Rafael Braga Vieira, detido durante os protestos e acusado de incendiário por portar uma garrafa de detergente, que acaba de ser condenado a cinco anos de prisão. A coisa fica ainda mais gritante se colocarmos esse exemplo ao lado do recente episódio do helicóptero de um oligarca e político mineiro, encontrado com 450 kg de cocaína – político contra o qual, diz-se apesar disso tudo, "não há nenhuma prova". Tudo isso com a aprovação do judiciário responsável pela heroica prisão dos “mensaleiros”, sob os auspícios da condenação prévia da mídia corporativa e seus coxinhas de plantão.

Em todo esse processo, a pauta inicial da revogação do aumento da passagem se ampliou e se diversificou. Isso teve efeitos positivos e negativos. Dentre os efeitos positivos, está o fato de que a luta contra o aumento se apresentou imediata e estrategicamente como uma luta pelo transporte público de qualidade, através do lema “Não é só por 20 centavos”. Não foram poucos os analistas que apontaram que este tema e, mais ou menos a reboque dele, o tema da melhora dos serviços públicos em geral (não só transporte, mas saúde, educação, etc.), era um dos motes dos protestos. E o era, segundo muitos desses analistas, porque quem estava nas ruas seria aquela “nova classe média”, ou seus filhos, que, depois de conseguir a inserção no mercado de consumo nos anos do PT (de Lula, sobretudo), agora reivindicavam do governo o acesso a uma cidadania mais plena, através do acesso a serviços públicos de qualidade. Ao mesmo tempo, isso apontaria para um esgotamento ou, ao menos, para o limite do modelo conhecido como “lulismo” – isto é, um modelo de distribuição de renda e diminuição da miséria e da desigualdade via geração de emprego e programas de renda mínima; um modelo caracterizado pela conciliação de classes, pelo não enfrentamento do capital especulativo e por algum incetivo ao capital industrial; uma conciliação que, por sua vez, foi feita através de alianças entre espectros a princípio opostos do cenário político, possibilitando a tão desejada “governabilidade”; governabilidade que, por fim, na forma de manutenção do poder a todo custo, vem se mostrando, também ela, um grave limite do governo do PT (e, talvez mais amplamente, do nosso próprio sistema representativo). Se tudo isso é verdade, um dos efeitos mais positivos das manifestações foi o de abrir um horizonte de lutas para uma cidadania mais plena e, quiçá, para mudanças estruturais que seriam o pressuposto desta.

A isso se soma um segundo efeito positivo, intimamente ligado a esse conjunto de pautas ligados à melhora dos serviços públicos e ao consequente exercício pleno da cidadania. Trata-se do problema do uso da cidade. Como David Harvey procura mostrar em um (já clássico) artigo de 2008, foi através da reconfiguração de grandes cidades que o capitalismo se reestruturou depois de graves crises, nas quais ele pode reinvestir o capital excedente e seguir o seu espiral de crescimento (como teria sido o caso de Paris no século XIX e de Nova York a certa altura do séc. XX). Parece que algo análogo pode ser visto em muitas grandes cidades hoje em dia. No Rio de Janeiro, por ex., é claríssima a tentativa de estruturar a cidade segundo os interesses privados em detrimento do uso público que dela podem fazer os cidadãos. Para além da oposição ente público e privado, poder-se-ia inserir nessa discussão, via Negri e Hardt, a questão da produção do comum: tratar-se-ia então de pensar uma gestão dos espaços da cidade que não fosse colocada nas mãos nem da iniciativa privada, nem do poder público (do Estado), mas sim diretamente da comunidade de usuários [1].

Dentre os efeitos negativos das manifestações, poder-se-ia destacar a emergência de pautas e atitudes fascistas ou, ao menos, marcadamente antidemocráticas, e mesmo de movimentos que já falam abertamente na volta da ditadura. Houve momentos em que tais pautas pareceram tão fortes que não foram poucos os que aventaram a necessidade de uma frente ampla da esquerda para barrar o seu crescimento. As atitudes chamadas (às vezes um pouco apressadamente) de fascistas se confundem um pouco com a atitude mais geral e difusa dos que são “antipolítica” ou, antes, dos que são antipolíticos. Mas mesmo isso que poderia ser apenas um efeito negativo, teve também seu lado positivo: de fato, outro tema que teria surgido nas ruas seria justamente o tema da “crise da representação” (uma crise mais ampla de legitimidade não só da democracia, mas da noção mesma de representação) e, mais especificamente, da forma-partido. Bem entendido: que haja tal crise, não é necessariamente bom nem ruim; mas que essa questão tenha vindo à tona claramente, me parece algo positivo.

Ligada a essa crise da representação, apareceram também alternativas à organização da luta, como as diversas formas de democracia direta, de organização horizontal e de autogestão, potenciados pelos novos meios de comunicação. Estas formas de organização podem ajudar a prover maneiras de articular contemporaneamente múltiplas e diversas pautas, das quais as que mencionamos aqui são uma pequena mostra, posto que seja uma mostra das que mais tiveram peso nos protestos. Quiçá, até o modelo de disciplina experimentado nas casas do “Fora do Eixo” possa servir, de algum modo, para pensar novas maneiras de organizar a vida e o trabalho (talvez via uma superidentificação [2] que subverta o seu sentido).

Por outro lado, mesmo sem reduzir a política à eleição, mesmo procurando construir esta para além daquela, há que se pensar porque, com toda essa “crise de representação”, o governo Dilma se recuperou da queda de aprovação que experimentou durante as manifestações e agora vai muito bem, obrigado, rumo a uma eleição, até agora, sem grandes adversários à altura - no campo da representação partidária, ao menos... No sentido oposto, há de se pensar por que isso não ocorreu - e esperamos que não ocorra - com o governo Cabral, por ex., ainda que em ambos os casos nenhuma alternativa no âmbito político-eleitoral tenha tido um papel importante preponderante na queda da aprovação dos respectivos governos e ambos tenham sido alvos das manifestações. 


A proximidade do governo estadual e a relativa distância do governo federal em relação às manifestações pode ajudar a compreender esse quadro. Posto que o governo Dilma tenha dado o seu aval à repressão estatal, os manifestantes sentiram na pele não esse aval, mas a polícia do Cabral - o que, bem entendido, em nada tira a responsabilidade do governo federal pelos episódios de repressão violenta e arbitrária que ocorreram em várias cidades do país. Além disso, talvez a visão de que a Dilma ainda representa mal ou bem (mal ou mal, diria) a continuidade dos avanços do governo Lula, bem como o passado de lutas do PT, (morto-)vivo ainda no presente de luta de muitos dos militantes de base do partido junto aos movimentos sociais, podem ter contribuído para amenizar o impacto das manifestações na esfera federal. A imagem de Cabral, por outro lado, um político sem nenhuma raiz nos movimentos sociais, vem se desgastando há um tempo, pelo menos desde o episódio dos lencinhos em Paris. Se esse quadro não explodiu antes, isso não parece se dever à "habilidade política" do governador, mas sobretudo aos fortes interesses econômicos que ele representa. Dilma fez pelo menos um aceno (falso ou verdadeiro que seja, ou tenha se demostrado) de que escutaria as ruas, com o anúncio dos cinco pactos já no início das manifestações. Os recuos tardios de Cabral soaram mais como uma derrota do governo diante da força das ruas do que como uma abertura daquele para a escuta destas. Sob esse aspecto, aliás, o da "habilidade política", poder-se-ia compará-lo também ao prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que mesmo em toda a sua arrogância, tem se mostrado bem mais habilidoso, ardiloso, escorregadio - para o que contribui, claro, a distância das eleições municipais. A isso poder-se-ia acrescentar, entre outras coisas, que o peso dos protestos tende a ser proporcional à extensão do governo em questão: uma mobilização que é capaz de abalar uma cidade ou um estado não tem necessariamente força suficiente para abalar (de maneira idêntica) um país inteiro. 

Longe de ser exaustivo, esse conjunto de fatores pode dar algumas coordenadas para pensar o problema. Resta saber se quem sairá queimado dessa história, sobretudo no Rio de Janeiro, serão apenas as figuras públicas específicas, como até agora parece ser o caso, ou se a coisa vai respingar para seus respectivos partidos. Quanto a isso, convém não só esperar a resposta das ruas, mas também ajudar a construí-la.

Do ponto de vista estratégico, parece que as mobilizações de junho a outubro deste ano mostraram que as pautas simples, diretas, que afetem claramente a classe trabalhadora e possam ter um efeito imediato - como a pauta “contra o aumento da passagem” - têm uma capacidade maior de mobilização do que pautas mais vagas e distantes como “10% do PIB para a educação”. Tal estratégia foi brilhantemente seguida pelo MPL. A reboque destas, outras pautas coligadas acabam por aparecer. 

Todavia, não sei se o movimento dos professores do Rio de Janeiro, que fechou (cronologicamente, mas manteve, com isso, aberto o tempo de lutas) as lutas de outubro (cariocas, ao menos), pode ser lido nessa mesma chave. Embora a pauta simples e direta dos salários fosse o carro-chefe, acho que entraram aí o prestígio social que a profissão ainda goza de certa maneira na sociedade e o gritante contraste deste com o prestígio econômico da classe, bem como, claro, a maré das jornadas de junho-julho(-agosto). Convém notar que a luta dos professores concentrou quase todos, se não todos os elementos recorrentes nas manifestações: o uso das redes sociais; a cobertura ambígua e tendenciosa por parte da mídia corporativa; a ampliação da pauta de uma luta (fundamental) por melhores salários para uma luta (tão ou mais fundamental) por um outro modelo de educação; a crise entre a representação (sindical, no caso) e a base (não) representada; e, por fim, mas não por último, a brutal repressão policial, respaldada “até” pelo STF, em resposta à qual surgiu a bela aliança entre os professores e adeptos da tática Black Bloc – amalgamada no emblema “Black Prof”.


Uma última nota para concluir, por enquanto, essa narrativa provisória e aberta: para alguns, um dos limites das manifestações talvez esteja no fato de que elas parecem se dirigir sobretudo ao Estado e ao governo constituído para ter suas demandas atendidas. Todavia, nesse mesmo movimento, novas organizações e articulações ou, ao menos, novas possibilidades de organização e articulação das lutas parecem ter surgido, a partir das quais se pode pensar seja um projeto alternativo de governo, seja (por que não?) a constituição de outros, inéditos espaços para a política; outros, singulares espaços para a decisão do futuro de cada e de toda(s) a(s) comunidade(s) - um âmbito em que, talvez, o comum seja cada vez mais o lugar aberto d(a criação d)o singular.

[1] Sobre o comum para além do público e do privado, cf.: http://uninomade.net/tenda/nem-do-estado-nem-do-mercado-o-maraca-e-nosso/

[2] Sobre a superidentificação, cf.: http://ideiaeideologia.com/referencias-12112013/ e http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/slavoj-zizek-e-a-renovacao-do-marxismo/ 

Publicado (com modificações) em: http://ideiaeideologia.com/nota-2-26112013/ 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Do Cristo



Suposto que há algo que o acontecimento histórico, o pensamento e as narrativas que estão no princípio da era cristã ainda têm algo a nos dizer, um dos caminhos, se não o caminho para ouvi-lo talvez comece com a ideia de que o Cristo precisa ser compreendido como amor ao próximo. Nesse sentido, ser cristão significa ser tocado por esse amor que o Cristo é – esse é o sentido de toda conversão, que não é senão o salto para a Fé. Fé que não é senão isso: o amor ao próximo. Pois amor ao próximo não significa senão tomar o “semelhante” como o abismalmente incompreensível. A singularidade é o signo desse abismo ou, antes, sua manifestação. Esse incompreensível é aquilo em que se tem Fé: a ele só se pode ter amor – esta é a única maneira de compreendê-lo, isto é, guardar para ele o espaço que lhe é próprio na compreensão: a incompreensibilidade. O amor é a experiência aberta e ativa desse incompreensível.


Dizer que ele só é incompreensível como e no amor significa dizer algo próximo do que sentimos quando temos uma pessoa amada: por mais que enumeremos as qualidades que nos fazem amá-la, tais qualidades são por demais abstratas para dar conta da pessoa em que elas têm a sua concreção [1]. Não que esta pessoa seja um “núcleo duro”, uma “substância” que, estando para além de tais qualidade, em algum sentido as sustenta; tais caracterizações me soam por demais coisificantes e/ou abstratas para dizer esse “além” que a pessoa é e que ultrapassa as qualidades. Pois bem: esse “além” não é nada mais senão a existência mesma da pessoa – o que, uma vez mais, não é seu “ser simplesmente dado” no mundo, tampouco o mero conjunto das qualidades. Nada mais que as qualidades, todavia, o mistério da pessoa (das pessoas) está justo aí: nesse “nada” que ela tem a mais, nesse “nada demais” – é isso o que cada pessoa é, fundamentalmente.

E é isso que amamos em quem amamos: todas aquelas qualidades – e nada mais; mas, sobretudo, esse “nada (a) mais”. Testemunho disso me parecem ser tanto a impossibilidade última de oferecer as razões pelas quais amamos alguém – antes de intransitivo, o amor é um infinitivo sem sustentação: um abismo incompreensível – quanto o “nada” que, por vezes, faz com que deixemos de amar alguém – e todas as qualidades e defeitos, perdidos e achados no ser antes amado, aos quais procuramos atribuir o fim do amor, no fundo nada explicam: a causalidade não faz sentido aí.

A fé, ou amor a Deus, não é senão isso: a disposição que nos abre à incompreensibilidade que cada pessoa é, à sua maneira, ao seu jeito, enquanto singular. Por isso, ser cristão, a rigor, não é uma decisão, ao menos não no sentido de algo que está, em alguma medida, sob o controle da nossa vontade: trata-se da direção, do sentido de um esforço [2] para o despertar súbito dessa disposição que é a fé, ou o amor a Deus. A graça é o ter despertado tal disposição; no instante – raro – em que ela é despertada, dá-se, aí sim, a conversão: sou Cristão.

Existencialmente, a rigor, não há como distinguir entre passividade e atividade em uma ação: nem sou determinado de fora por uma cadeia causal ou o que quer que seja, nem eu como sujeito sou a causa da minha ação. A ação ou, ao menos, a ação autêntica é aquela em que quem vive é tão só a possibilidade em ação. “Ser tocado” ou “agir” ainda são imprecisos: quem existe é a sua possibilidade, é aquilo mesmo em que se realiza, é a ação mesma. Por isso, a decisão por querer ser cristão é, em algum sentido, já ser tocado pelo ser cristão ao mesmo tempo em que se tem a cada passo a absoluta incerteza de que se é o que se quer – se se está à medida da possibilidade em que um se envia.

Em outras palavras, o que há de certo (em todos os sentidos dessa palavra) e jamais o porquê de ele advir nesse sentido e se enviar nesse sentido: o esforço num sentido em última instância sem fundamento que não sua própria incompreensibilidade é isso quem somos, quem sou. A experiência disso como ateísmo autêntico é o absurdo; a mesma experiência – com uma diferença de nada – como confiança é a fé, o amor confiante ao que é incompreensível. Mas não haveria a paixão, o amor pelo absurdo num ateu como, digamos, Camus? A diferença dele para um crente não seria meramente nominal? O crente não daria uma máscara suportável, e mesmo amável, ao absurdo?

Como esforço sem sentido, enraizado na fé no abismo que é a outra face do sentido mesmo da vida, a fé é indistinta do desespero. Com o risco de parecer tomar um jogo de palavras por uma experiência, é possível dizer que o ateísmo é o desespero de toda fé: nada se espera dela, ela não tem sentido; já a fé só é autêntica fé enquanto fé desesperada: o amor sem sentido e que nada espera do incompreensível: confia no que ele pode dar; jamais desconfia dele – não condena o destino, embora possa julgá-lo. Todo julgamento de fé é absolvição certa: o emitir um parecer que jamais busca encerrar o julgado ao que dele aqui se mostra; isso é o abstrato nele, que justamente precisa ser dele isolado para que o julgado – a pessoa, Deus mesmo – se mostre como esse incompreensível para além. Daí vem o modo como o que se esforça por ser cristão precisa agir com o outro.

Mas antes de falar sobre isso, uma objeção: nada esperamos de Deus? Não é a coisa mais comum o fato de que quem crê pede a Ele muitas coisas em oração? Mas o pedido de fé é justo aquele que confia no incompreensível: jamais afirma-se merecedor e julgado bom quando recebe; jamais se julga esquecido e deixado de lado quando não recebe. Alguém poderia dizer: tampouco pode se dizer não merecedor quando não recebe. É justo, muito justo. Mas não se pode esquecer o quanto há, ou pode haver, de autopiedade e preguiça nessa atitude. De fato, se não é possível dar razões para que Deus não nos dê o que queremos e se não é possível por a culpa nele; e se o desejo permanece e segue nos parecendo justo, havemos de dirigir nossos esforços justamente ao âmbito sobre o qual temos algum – algum – “poder”: nossa vida. Nesse sentido, o erro, ou o desvio, sempre precisa se voltar sobre a nossa vida mesma, ainda que não nos pareça nosso: pois é só aí que podemos “interferir”, “agir”[3].

(Por sinal, a perversidade de certos protestantismos hoje em dia está justamente na tentativa de determinar, teria dito Descartes, “o que Deus pode e deve fazer”. Essa arrogância está precisamente no “Faça isso, então Deus vai te recompensar”. Nesse sentido, Paulo estava certo em dizer que a medida da salvação é a fé, não as obras; também estava correta a raiz do protestantismo, quando lembra que a salvação vem em última instância da (ou: de) graça)

Daí o esforço próprio ao cristão, ou ao que se envia na possibilidade de sê-lo: perdoar sempre, o "dar a outra face". Aí está a humildade. Bem entendido, isso não significa ser condescendente, não emitir pareceres sobre as coisas ou não lutar pelo justo; uma tal fé não implica em passividade [4]. Significa, isso sim, colocar esses pareceres no seu devido lugar: juízos abstratos sobre coisas e pessoas concretas (no sentido de Hegel). Julgo o abstrato nos outros e eventualmente, quando me parece o caso, o condeno; mas jamais me permito reduzir a singularidade desse outro a tal juízo e condenação. Isso se traduz na disposição, ou ao menos no esforço para ouvir no outro sempre a sua possível singularidade, o seu merecer ser ouvido. Em verdade, não importa o que outro faça ou o quanto eu queira fazer dele – em geral, maximamente meu semelhante nesses casos –, a singularidade sempre se salva das malhas da abstração. E o que salva é a sua Incompreensibilidade radical, isso é a raiz e o fundamento da pessoa: o divino nela, o que ela tem de bom: o bem mesmo (o Incompreensível). Contemplar o bem é justamente compreender o incompreensível em sua incompreensibilidade – isto é, guardar para ele, o bem, o seu lugar mais próprio.

O verdadeiro cristão talvez seja aquele cuja fé é desespero: o esforço confiante por nada, em um sentido sem fundamento - ou cujo fundamento é nenhum. E, nisso, a confiança justamente nesse incompreensível que está na base do sentido e o agir desde e por ele.

Ora, seria uma má compreensão entender essa fé como preguiça e fim de toda tentativa de compreensão, de explicação, de ação. Determinar desde o início tudo que lhe chega como incompreensível é testemunho de um panteísmo estranho, cético, preguiçoso, arrogante. Conceder o lugar próprio ao incompreensível é justamente o contrário: um esforço de compreensão que não cai nem na arrogância cética (ou pretende não cair) nem na arrogância de tudo determinar e, quiçá, dominar racionalmente. Ambas são faces da arrogância propriamente filosófica – a segunda, muitas vezes com uma cara eminentemente científica ou, ao menos, técnica.

O incompreensível jamais é o meramente incompreendido: e delimitar a fronteira entre um e outro é um, se não o esforço permanente do pensamento. 

(Rio, 02.02.12)

***

[1] A ideia de um amor como este me parece claramente expressa no "Madrigal Melancólico", de Manuel Bandeira, um poema que, por sinal, me parece poder ser incluído dentre as figuras da singularidade qualquer apresentadas por Agamben em A comunidade que vem:

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida. 

(11 de junho 1920)

[2] Mas não seria esse esforço a “prova” de que já se está (já se caiu...) na graça de Deus? Não é todo esforço no sentido da fé uma obra da graça?

[3] Por mais insuficiente que isso possa ser do ponto de vista ontológico, entenda-se por “vida” o todo das possibilidades que cada um de nós é, as quais sempre se dão em uma certa (determinada) relação de ser consigo mesmo, com os “outros” e com as “coisas”.

[4] Que, é bom que se lembre, precisa ser pensado junto com "Não vim trazer a paz, mas a espada." Para uma discussão da relação entre a posição do cristão e a ação (política): http://blogdoantifon.blogspot.it/2013/09/a-mascara-cara-o-rosto.html

domingo, 27 de outubro de 2013

A esquerda e o Cristo

(...) tenho pensado ultimamente que o sentido (metafísico) de uma posição radical de esquerda está justo em uma decisão (ética) radical pela compreensão da singularidade - mas em um sentido preciso: no sentido de acolher no compreender o que o singular tem de próprio; isto não seria nem uma "identidade" nem a "diferença", mas justamente: a radical incompreensibilidade. Bem entendido, "radical incompreensibilidade" não tem aqui apenas o significado "negativo" de que ninguém se compreende (sobretudo se crermos que a compreensão só existe onde há alguém e não o Ninguém) e que tudo é relativo, mas sim o sentido de que aquilo que nos é mais universal, mais compartilhado, o que nos faz Próximos uns dos outros é justamente a singularidade. É para que esta tenha lugar que lutamos; e o lugar em questão é a escuta. Nesse sentido, a luta política é a luta para criar um mundo enquanto espaço de escuta do incompreensível singular - em "mim" e no "outro". Trata-se de uma luta, pois, contra toda reificação, contra toda a redução abstrata do singular a qualquer que seja o nome abstrato - evangélico, gay, latino-americano, quiçá homofóbico, fascista, etc. Com isso não quero dizer que o abstrato não tenha lugar na compreensão; apenas se compreende que o singular jamais pode ser reduzido a ele e que, portanto, o abstrato nada mais é do que um momento da história de aproximação, pela compreensão, do incompreensível singular. Não vejo como, por exemplo, se devem existir instituições, essas não tenham que operar a partir de um nível - por vezes altíssimo - de abstração, de re(con)dução do singular ao universal.

É mais ou menos a partir daí que penso, aliás, a posição de um (aspirante a) cristão (e aqui talvez não poucos tapem os ouvidos...). Isso ao menos na medida em que a mensagem do Cristo possa ser sintetizada em duas máximas: "Não julgueis para não serdes julgados" e "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo". A primeira me diz justamente: não reduza o singular, em especial na pessoa do outro, ao abstrato. Bem compreendido, vou continuar emitindo pareceres (doxai) sobre as pessoas; só que não vou me arrogar o direito de reduzir quem quer que seja a esse parecer, de determinar de uma vez por todas quem é este com quem me relaciono (por mais difícil que seja escutá-lo...). Esse é o sentido do perdão no Cristo: a luta contra a redução do singular ao abstrato; contra a arrogância de, teria dito Descartes, reduzir Deus a "ficções, afetos humanos" e procurar determinar "o que Deus pode e deve fazer". No incompreensível singular, que o próximo tem em si, que o próximo "no fundo" é, eu confio: isso é a fé em Deus. E eu o acolho, eu procuro escutá-lo (na medida da minha finitude, ao menos): isso é amar. Sobre todas as coisas, eu tento acolher e escutar aquilo que é comum a todos nós, o fundamento mesmo da comunidade: o incompreensível singular que cada um é - isso é Deus. Amar ao próximo como a mim mesmo, portanto, é justamente o contrário de reduzi-lo à "minha imagem e semelhança": é reconhecer que o abismo nos une, que o que temos em comum é a "nossa" singularidade - que é a partir daí que se funda, e que precisamos fundar, a cada vez, a comunidade, a pólis.



(começo de agosto de 2013)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A máscara, a cara, o rosto

A máscara, a cara, o rosto


"A metade vale mais que o todo [o tudo]"
(Hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 40;
 relembrado por Platão em República, 466c) 


Publiquei, há um tempo, o seguinte texto na minha página no facebook:

Se levarmos a sério, ao pé da letra mesmo, o nome (sic) 'Anonymous' e se considerarmos os últimos e esquizofrênicos episódios em torno dessa coisa (um anônimo que, querendo se manter anônimo, diz que outro anônimo não é ele), me parece que fica clara uma coisa: a rigor, não há como fazer política sem ter uma cara (o que, quiçá, não precisa necessariamente significar a rigidez de uma identidade substancial, mas um incessante 'ou isso ou aquilo'). Nesse sentido, ou bem se assume essa cara autonomamente, ou bem ela vai acabar aparecendo em meio à luta política, quando se for compelido a tomar partido - e, se não vejo mal, na política sempre é preciso fazê-lo. Ou é isso, ou a máscara fica mesmo vazia, e nela se pode encaixar absolutamente qualquer coisa: e qualquer poder contestatório que ela poderia ter se desmancha no ar. Se é assim, a rigor em política jamais existe 'Anonymous': no máximo 'Pseudonymous' ou 'Heteronymous'.”

O Brasil estava em meio às “jornadas de junho” e um vídeo intitulado “As Cinco Causas” havia sido divulgado em nome (!) do Anonymous. A pretensão do vídeo era responder às críticas de que as manifestações não tinham uma pauta clara. Para responder a essa crítica, o anônimo do vídeo propunha cinco pontos “sem polêmicas de cunho religioso ou ideológico, sem bandeiras partidárias ou subjetividade” (sic!), que seriam “causas de cunho moral que são unanimemente aceitas” (sic!!). O objetivo declarado da proposta era, portanto, pautar as manifestações, dar-lhe uma identidade – se quisermos: uma cara. A alegação era que, sem isso, o movimento poderia perder força. Pelo teor coxinha (ou, como prefiro, bunda-mole [1]) da apresentação do material e das causas propostas, ou ao menos de parte destas, o vídeo teve ampla divulgação.

Críticas sobretudo à esquerda não tardaram a aparecer, assim como não tardou a aparecer uma resposta dos que seriam os “verdadeiros” Anonymous (ou simplesmente outros Anonymous), dizendo que aquele vídeo “não os representava”. Deixando de lado o fato de o vídeo ter vindo ao encontro da tentativa da grande mídia de pautar as manifestações, depois do fracasso da estratégia (jamais abandonada, como mostram os últimos acontecimentos) de simplesmente criminalizá-las; e deixando de lado a tentativa legítima de pensar o que as manifestações querem (sobre o que também dei um pitaco bem simples na época), interessava-me no comentário que abre esse texto pensar a seguinte questão: em que medida se pode fazer política permanecendo sem tomar um partido, usando uma máscara para não dar a cara a tapa?

A minha posição permanece a mesma: não é possível. Isso porque fazer política implica em pensar um direcionamento, um sentido que se quer dar ao todo da comunidade em que se faz política e, com isso, lidar com os outros sentidos que múltiplas partes da comunidade procuram dar a esta, bem como com as complexas relações de poder (de violência e de diálogo) ligadas a essa lida. E por mais que se declare uma coisa para "mascarar" que se quer outra, o modo como se age nos âmbitos públicos de decisão da comunidade (ao menos se, ou sobretudo se, esta comunidade procurar se constituir de fato como democrática) ou então o caminho mesmo que a comunidade toma vão mostrar, mais cedo ou mais tarde, que compreensão para o todo o "mascarado" em questão quer fazer vingar. Isso é verdade sobretudo quando há uma intensa e constante participação de todos (ou da maior parte) (d)aqueles que compõem a comunidade em questão. Ou é isso ou, como me parece ser muitas vezes o caso de máscaras ou de estratégias/estéticas como a do Anonymous, a máscara serve para absolutamente qualquer um tomar parte da política como quiser. Nesses casos, ela tende a tornar-se uma máscara vazia de força política, na medida em que, por si, não aponta nenhum sentido para o todo da comunidade, sendo apenas a expressão insossa de um ninguém sem desejo (próprio).

Pois bem, o corolário dessas considerações parece ser: em política, não há máscaras. Há caras que, de um jeito ou de outro, se põe à nu no palco das decisões públicas. Mas há máscaras e máscaras: aqui é preciso fazer uma distinção, que talvez possa ajudar a pensar o mais recente capítulo da tentativa de criminalização de manifestações e manifestantes: a proibição do uso de máscaras no estado do Rio de Janeiro.

Ora, a interpretação feita até aqui parece supor, em parte, que “máscara” é algo que simplesmente serve para esconder uma “cara” por trás. Ela parece presa a uma distinção muito comum em qualquer metafísica (de botequim) entre uma aparência ilusória, falsa e/ou enganadora (a máscara) e um ser verdadeiro que por vezes se esconde nessa aparência (a cara). Dizemos que “parece supor em parte” porque o ter uma cara, no caso do Anonymous, não implica em retirar a máscara, mas sim em tomar partido, em dar uma cara à máscara – fazer da máscara (um) alguém.

É aqui que se pode estabelecer um corte no modelo que simplesmente opõe ser e aparência: máscara e cara seriam, em verdade, dois nomes para o mesmo. Os gregos, por sinal, já compreendiam máscara e cara (e também, sintomaticamente, personagem e pessoa) sob uma mesma palavra: prósopon. Mais, ainda: o significado de "personagem" -- isto é, de apresentar-se publicamente diante do outro nos acontecimentos da pólis (autodenominada democrática) que eram os espetáculos teatrais -- é primário em relação ao significado de “pessoa” [2].


Foto de Andrew Matusik, Magritte Fashion, para o editorial "Sir Realist". (http://trendland.com/magritte-fashion-editorial/)

Para nós, isso indica o seguinte: é através das várias máscaras, ou caras, assumidas de maneira mais ou menos autônoma na vida comum, que vai se delimitando, em relação ao todo das máscaras e caras possíveis à vida, a parte que me (ou nos cabe). Esse singular tomar parte no todo da vida, que acontece de um jeito ou de outro a cada um de nós, poderia, com justiça, ser chamado de rosto - na medida em que "rosto" pode ser o "símbolo" (palavra que em grego tem justo o sentido de “encontrar”, “vir para junto”) da história de uma vida. Ora, desde que entramos na vida, somos levados a lidar com as caras ou máscaras que nos chegam dos outros, em meio às quais nos decidimos, de modo mais ou menos autônomo e explícito: dentre muitas outras coisas, ganhamos um nome próprio, um signo de filiação (ou falta de); nos engajamos nessa ou naquela profissão dentre as que o mundo oferece; tomamos partido por essa ou aquela posição política; recebemos do Estado uma carteira de identidade e um CPF, com números e a foto de um “rosto” que pretensamente identificariam quem realmente somos.

Por sinal, estas últimas máscaras, as que nos vêm do Estado estão dentre as que mais podem gerar ilusões e, antes, injustiças, do ponto de vista de uma narrativa existencial. Pois o “rosto” e os números abstratos que constam nos nossos documentos de identificação não são mais que um momento abstrato, e reificado, de uma história singular – eis uma injustiça; e não raro estes e aquele contribuem para fazer com que aquela identidade reificada se faça passar por esta história – eis uma ilusão. Sinal disso é o desaparecimento de rostos por anos em meio aos processos judiciários abstratos e impessoais. Sinal mais claro são os rostos que perdem a vida por serem subsumidos pelas forças do Estado à máscara abstrata de “meliantes”. Sinal mais claro ainda são os rostos que permanecem anônimos, às margens dos serviços e direitos que o Estado deveria garantir, rostos que este só se interessa em identificar quando causam algum “incômodo” à ordem estabelecida. E os exemplos, nesse último caso, são inúmeros: ou porque suas moradias atrapalham a expansão do poder econômico, ou porque sua presença atrapalha o mercado do turismo, ou porque, enfim, eles decidiram reagir e reivindicar que a política seja o lugar para garantir e expandir direitos, promover a justiça social e garantir que cada um possa realizar-se em sua singularidade. O anonimato e suas máscaras convêm ao Estado e aos interesses econômicos que o governam apenas quando servem aos seus objetivos de exclusão, exploração e domínio, e não quando são usados como proteção e arma por aqueles que lutam pelo direito de ter um rosto.

Ora, sobre esse pano de fundo, a decisão da Alerj de proibir máscaras nas manifestações, ainda mais se considerada desde o contexto mais geral da progressiva criminalização dos movimentos sociais e das manifestações por parte do Estado e da mídia corporativa, opera exatamente a redução que tentei esboçar acima. Trata-se de reduzir as possibilidades de manifestação (política) da vida (em) comum; de reificar e, com isso, procurar dominar as muitas caras, máscaras e, assim, os muitos rostos que podem ter lugar na vida, subsumindo essa multiplicidade a uma identidade pré-determinada pelo próprio Estado. Isso é um golpe não só na liberdade “de expressão”, mas, ao menos “simbolicamente”, à liberdade de constituição diversa e singular da vida, sobretudo na medida em que esta se dá como um tomar parte e partido nos rumos da vida (em) comum – na medida em que ela se dá como política, pois.

À máscara excludente do “meliante” e à máscara redutora do “vandalismo”, a mídia corporativa e o Estado acrescentam agora a máscara reificante da cara sem máscaras, da identidade pré-determinada. Talvez esta última seja a mais perversa: tanto por conta da compreensão comum de que este é, “na verdade”, o “nosso rosto”, e que é assim que quem quer se manifestar dá a cara a tapa de fato – quanto pelo fato de que a proibição foi aprovada sob a máscara da democracia, por representantes eleitos por todos.

Nesse sentido, um dos trabalhos agora (e sempre) é justamente desmascarar os interesses que se apresentam como “de todos”, mostrando-lhe a cara (ou a máscara) que cabe "de verdade" a cada vez a cada um que toma parte no jogo político. Para isso, como temos visto (mais eloquentemente) nos últimos tempos, nada melhor que a força das ruas.

Foi por conta desta força que o prefeito e o governador do Rio de Janeiro foram levados a reconhecer, respectivamente, a face nazista de sua política de remoções e a ausência de diálogo que caracteriza seu governo. Foi por conta desta força que a mídia corporativista foi constrangida a mostrar mais claramente a sua cara, ao trocar seguidamente de máscaras no modo como (en)cobria as manifestações e ao ser levada a dar a cara a tapa, em uma confissão histórica, mas certamente ambígua e contestável, de seu apoio à ditadura militar no Brasil.

É pela força das ruas, enfim, que me parece poder-se cumprir a tarefa de fazer vir ao palco, em sua máscara "autêntica", os atores do teatro político do presente no Brasil. Mais, ainda: é a força das ruas que torna possível o trabalho pela ideia de criar a vida (em) comum como um cenário no qual, através de uma democracia radicalmente horizontal, ninguém seja constrangido pelo poder a assumir máscaras que desfigurem o seu rosto próprio. Um cenário no qual cada um tenha espaço para viver com as máscaras e caras com as quais possa, livremente, criar e recriar para si um rosto singular.


***


[1] As mobilizações dos últimos meses, na medida em que populares e com pautas progressistas, merecem todo o apoio. Mas, como se não bastassem as pautas (e atitudes) de direita, a violência do Estado e o “vandalismo” da mídia, todo esse processo teve ainda um efeito negativo: o rebaixamento do nobre salgado que atende pelo nome de "coxinha" à designação de certo tipo de manifestante indigesto ou, no mínimo, insípido (mas de modo algum inofensivo). A esse respeito, eis aqui minha reivindicação: substituamos essa designação por alguma mais ao sabor das atitudes dessas pessoas. "Bunda-mole" talvez seja uma opção, com a vantagem que já teríamos até um substantivo abstrato para designar o "movimento" ou "doutrina" representado(a) por tais pessoas: o "bundamolismo".

[2] Ver: CHANTRAINE, Pierre. Dcitionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Histoire des Mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1900. Verbete “prósopon” (p. 959) Enquanto escrevia esse texto, me deparei, na comunidade da Universidade Nômade no Facebook, com uma postagem bastante interessante de Bruno Cava Rodrigues, que, por intimamente relacionado com o tema do meu texto (que, em certo sentido, é um possível desenvolvimento do que ele diz na postagem), faço questão de reproduzir na íntegra aqui: “Em grego antigo, prósopon é simultaneamente "máscara" (usada nos teatros públicos) e "rosto". Mas também pode ser traduzido simplesmente por "pessoa", no sentido de existência social na cidade. "Prósopon", por sinal, foi traduzida para o latim como "persona". A prósopon exprime o estado emocional em uma determinada situação. Não era tanto uma expressão da alma do indivíduo, mas um signo de sua existência implicada num ato coletivo, na figura do coro. Na teologia cristã dos primeiros séculos, Jesus se torna a unidade "prosópica" das naturezas divina e humana. Isto é, Deus e Homem são um só enquanto face: a imagem e semelhança de que fala a bíblia. Disto, seguem sucessivas manobras cristológicas cujo pano de fundo é a interiorização da máscara, individualizando a consciência que pensa e sente (e se culpa, e tem de confessar e expiar). A obra de Agostinho testemunha a respeito. A face humana passa a ser considerada manifestação de uma "verdade interior", do genuíno e autêntico estado de espírito de cada um. Essa hipostasiação da prósopon que só existia enquanto socialidade atinge o máximo no romance burguês do século 19, centrado na inadequação angustiada do indivíduo diante da sociedade. Mas também dessa manobra, já na idade média, disparam os inquéritos policiais, dedicados a sondar o interior de cada um, atrás de algo até então inédito, um novo conceito de verdade (Foucault). É o começo da história de um longo cinismo, que o estado vai aproveitar para fixar a máscara de cada um, segundo um poder catalogador. Registrada nos documentos oficiais, a substancialização da prósopon estabelece ao mesmo tempo a identidade individual (você e seu rosto são um só) e coletiva (você tem RG, é cidadão). Não admira a obsessão em evitar o teatro das ruas, em criminalizar o uso livre das máscaras. Nessa tecnologia de poder, a verdade não pode libertar-se dos aparelhos de estado, de sua dor característica, e seu inquérito infinito. Tentam impedir o retorno de uma realidade já ancestral: nossos rostos, afinal, não exprimem nada de "fundo". São máscaras, pele social, superfície de relações, e não têm nada mais rico e desejante (e perigoso) do que isso.”

domingo, 1 de setembro de 2013

Para uma ontologia (política) da greve

Foto de rafaelrvsilva (http://instagram.com/p/dkgzlzCcxk/)

Para uma ontologia (política) da greve


Sócrates: (…) Os jardins de letras, ao que parece, ele os plantará por diversão/de brincadeira (paidiâs) e escreverá, quando escrever, para acumular um tesouro de lembranças para si mesmo, quando ele se tornar esquecido na velhice, e para outros que seguem o mesmo caminho, e terá prazer em vê-los brotando em folhas novas. Enquanto outros se ocupam de outras diversões, refrescando-se com banquetes e coisas como essas, ele passará o tempo, como eu disse, em tais prazeres.
Fedro: Você fala belissimamente de um passatempo (paidián) que não é fraco não – um passatempo de quem é capaz de se divertir (paízein) com palavras (en lógois) contando histórias (mythologoûnta) sobre a justiça e outras coisas semelhantes.”
(Platão, Fedro, 276d-e, tradução (de tempo) livre.)


A foto acima me pareceu um bom pretexto para lançar uma ontologia (política) da greve ou, antes, a partir da greve (no Rio de Janeiro). O que segue é quando muito um esboço.

Em filosofia, o termo "ontologia" é compreendido, em linhas gerais, como a "ciência do ser (em grego: "ón", "óntos") ", o "estudo do ser", "o discurso acerca do ser". Ora, o cartaz que está na foto cita a noção de ser ("o ser é único"); daí um primeiro nível de leitura da brincadeira (?).

Mas tem mais: ao dizer "o ser é único", o cartaz pode chamar a atenção de muitos ouvidos acostumados à tradição filosófica, na medida em que pode remeter à tese que não poucos fazem remontar a Parmênides: a tese de que "o ser é um". Esta, por sua vez, pode ser entendida como a afirmação de que, "no fundo", todas as coisas só parecem ser diferentes e múltiplas, mas "no fundo" são uma só e idêntica (coisa?): o ser. Assim isolada, a frase parece rememorar, portanto, uma questão - se não
a questão - fundamental da ontologia: a questão da relação entre um e múltiplo. É o que parece se confirmar quando se olha para a primeira frase do cartaz, para a palavra "plural" (o que lembra, ao menos àqueles ouvidos calejados, o "múltiplo").

"Parece", porque se lemos a frase toda, ela diz: "A escola é plural, pois o ser é único.". Tal leitura pode pôr em colapso toda a lembrança (apressada) do parágrafo anterior. Isso porque, no contexto da frase toda, "único" parece significar não que "tudo é um" (que a aparente multiplicidade e diferença entre as coisas "esconde", na verdade, uma unidade, uma identidade real), mas sim que cada ser, em especial cada pessoa, é único, é singular, não pode ser reduzida a outra coisa, é "pessoal e intransferível" (se me é permitido o pleonasmo de "pessoa pessoal e intransferível"). Isso fica mais explícito se compreendermos por "contexto da frase toda" não só a própria frase, mas a sentença que vem depois dela ("Liberdade pedagógica!"), bem como o fato de que o cartaz como um todo pertence a um contexto singular: uma greve de professores.

O que está sendo reivindicado aí é a liberdade, isto é, a possibilidade de decisão e escolha por parte dos professores sobre qual caminho seguir quando se trata de "promover" ou, antes, propiciar um âmbito adequado para que se dê o aprendizado (no qual aluno e professor têm funções diversas, mas do qual ambos participam). E como essa reivindicação está sendo feita diante do Estado; como, além disso, ela envolve relações de poder diversas; e como, mais fundamental, ela põe em questão o sentido mesmo no qual e para o qual está caminhando uma comunidade como um todo, tal reivindicação é eminentemente política. 

“Curiosamente” – só que não – tal liberdade é negada justamente por uma gestão de cunho neoliberal, na qual o máximo aproveitamento dos recursos financeiros e avaliações duvidosas, ambas responsáveis pela redução de pessoas a números abstratos, impessoais e “objetivos”, tomam à frente do processo de aprendizagem e das situações singulares em que ele pode se dar em nome de uma produção em série de índices que rendem financiamento federal e, colateralmente, mão de obra economicamente barata e politicamente dócil para o mercado. Nesse sentido, a operação ("onto-política") das secretarias de educação do Estado e do município do Rio, na medida em que esta comungam de um mesmo objeto, guarda semelhanças à redução do diferente ou, antes, do singular, à identidade cuja paternidade costuma ser atribuída a Parmênides (se com justiça ou não, esta não é a ocasião para julgá-lo). Pois em ambos a multiplicidade e sua diversidade (no caso da aprendizagem, as singularidades pessoais e intransferíveis) são meras aparências que escondem a identidade (do processo que) real(mente conta) - a saber, os índices abstratos nos quais só cabe uma diferença quantitativa traduzível em números. 

Por outra: o processo "real", concreto e singular da aprendizagem é posto como mera função, mero meio, mero adorno em que o que "realmente" importa são os índices abstratos (de aprovação, de "dividendos educacionais"). Nisso, aquele processo tende a ser esvaziado de sua "realidade", isto é: tende não só a realmente ser sem valor (pois funciona em outra ordem de valores que não os que podem ser comprados e vendidos), mas também a perder as condições (materiais e humanas, "reais") para a sua realização. E isso se dá porque o poder daquilo que, na verdade (isto é, do ponto de vista da aprendizagem mesma), não (precisa) importa(r) se impõe como o que realmente conta, uma vez que, diz-se, expressa "objetivamente" que um processo educacional "realmente" se deu (por meio de notas, estatísticas, etc.). Não são em condições como essas que professores se queixam que "fingem que ensinam" e que os alunos "fingem que aprendem" - ou seja, que a aprendizagem se torna mera aparência? Não foi contra essa lógica e pela "questão pedagógica" que (a meu ver acertadamente) o município e o Estado decidiram manter a greve? 

(Bem entendido, tudo isso não implica que estatísticas e notas não possam ter um papel no processo educacional como um todo (com as instituições e os problemas políticos que envolve); apenas pontuo que a aprendizagem e suas peculiaridades são o que realmente importa, e aqueles números contam, ou podem contar, enquanto estão a serviço dela)

Ora, a reivindicação política de liberdade pedagógica está fundada em uma afirmação acerca do ser das coisas, acerca de como as coisas são (ou precisam ser (compreendidas) em uma comunidade que se quer democrática...); daí a ideia de pensar uma ontologia (um discurso (lógos) sobre o ser), mas uma ontologia política. Nesse sentido, tal ontologia envolveria a discussão sobre como uma comunidade (um bairro, uma escola, uma cidade, um país, o mundo mesmo) compreende de fato, isto é, nas suas atitudes, procedimentos e instituições, o ser das coisas e das pessoas - e uma discussão sobre como ela "quer" (ou "precisa") compreendê-los de acordo com o destino, o caminho que esta comunidade em questão decide tomar.

Aliás, por via da política, a questão do todo (que estava de uma certa maneira no "tudo é um" implicitamente contido no "ser é um", convém lembrar) retorna, mas não como unidade e identidade que torna todas as diferenças mera aparência, mas como a ideia de que o que há de comum (poderíamos dizer, para sublinhar a unidade aí: com-Um) entre todos nós (pessoas, ao menos) é algo que escapa a toda identidade e diferença fixas: a singularidade. Criar o espaço para que isto se dê, este me parece ser, aliás, o "real" sentido da ideia de comunismo...



***

Daí é tocar para frente (ou para trás, se for o caso), quiçá com a companhia dos caras que contemporaneamente tentam desenvolver essa questão do Uno-múltiplo, do idêntico-diferente, do mesmo-outro, relacionando-o com a política: o Badiou, o Zizek e companhia.


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Como se sabe, mas talvez não convenha esquecer, em grego "tempo livre" se diz skholé.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Em torno à porta da lei

Em torno à porta da lei (fragmento)


...o porteiro da "Porta da Lei", de Kafka, só pode ser designado mesmo por um nome abstrato, comum, justo porque significa um lugar ao qual as pessoas "concretas", com nomes próprios, não se reduzem e não podem reduzidas, sob a pena de perder esse incompreensível que as faz pessoas: o seu ser singular. A burocracia pode ser bastante racional, inteligível, técnica - mas nessa mesma medida é absurda, isto é, não compreende pessoas. Por isso, ainda que a porta seja  para o camponês e o porteiro saiba disso; ainda que este dirija várias perguntas àquele, durante os anos a fio em que estão lado a lado - essas perguntas são da incompreensão tecnicamente competente do "senhor", no sentido mesmo de "funcionário", e não do "nobre", no sentido nietzscheano. Certamente o porteiro sabe muito, sabe mesmo tudo sobre o camponês - mas nada compreende deste; mais, ainda: nem se interessa em compreender. Por isso mesmo, permanece indiferente a este: ambos, "no fundo", são apenas duas designações abstratas para um mesmo esvaziamento da singularidade, do outro (e de si mesmo) em sua diferença. Suspeito que o próprio camponês também permanece sem nome próprio não só por isso, mas também porque, em seu conformar-se a sua situação, "se deixa" reduzi a um nome abstrato...

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Nós e os gregos

Nós e os gregos: uma primeira aproximação

Umas das diferenças, se não a diferença fundamental entre gregos e modernos do ponto de vista político (e) existencial me parece ser essa: para os gregos o próprio, o familiar é compreendido em termos de comum e se realiza a partir do comum. Assim, o que para nós seria o “privado” é antes uma subtração ao “público” do que um âmbito originário a partir do qual este se constituiria. Mais, ainda: cada um só vem a ser o que é enquanto e como parte da comunidade, enquanto e na medida em que participa propriamente e originariamente do comum. Não é mais ou menos nesse sentido que precisam ser compreendidas as páginas de Aristóteles que visam explicar o sentido de zóon politikón – o ser vivo cuja vida é o comum? Não é nesse sentido que precisa ser pensado o comunismo platônico, como a tentativa de se fazer maximamente coincidentes o próprio e o comum, mas a partir deste?

Com efeito, na República, é como parte da pólis boa e reta que os guardiães e, quiçá, todos chegariam compreender o “meu” como o prazer e a dor do todo. Não se trata de compreender-me primeiro como indivíduo e, em seguida, por simpatia ou compaixão ou o que quer que seja “transferir-me para” ou “compreender” a dor do outro como minha. Trata-se, inversamente, de compreender-me primordialmente como sentido de “meu” o comum do qual cada um participa, antes de ser um indivíduo “separado” (se é que chega a ser em algum momento, no sentido moderno). Nesse sentido, talvez mesmo falar de “cada um” seja enganoso e precisaríamos de uma outra maneira para pensar esse “sujeito” originariamente não privado, sem interioridade, puro encontro de relações, cuja separação em relação aos outros se cumpriria, na cidade reta e boa, tão só por algo que se subtrai a essa comunidade – o corpo. Assim compreendido, o corpo soa como o que resiste a ser comum (ou cuja comunidade depende da decisão de uma instância familiar, não comum, prévia).

Será que isso sugere que nem a alma – o lugar próprio do privado e do interior, pelo menos desde Descartes, mas talvez desde de Agostinho ou mesmo antes – seria algo que se esquiva ao comum? Se o que se tem de comum e dito como “meu” aí são os prazeres, dores, experiências e o lugar destes (ou ao menos dos dois primeiros), como sugere o livro IX da República, são a alma, então temos razões para formular a coisa nessa direção. Um outro sentido para a ideia de Aristóteles de que a alma é em certo sentido todas as coisas? Por outro lado, o mito de Er já parece sugerir que a alma é algo da ordem do individual, quiçá do singular. (De maneira análoga, a proposição de que o comum é o originário entre os gregos (os gregos que analiso aqui, ao menos) parece ser mitigada pelo princípio, presente na República, de que todos são por natureza diversos, cada um para um fazer que lhe é próprio. Ora, esse princípio estruturador da comunidade só vem à tona na medida em que os seres humanos são originalmente não autárquicos, “heteráquicos”: são no modo da carência do outro enquanto princípio estruturador. Daí (das várias faces dessa necessidade de comum e em resposta a ela) surge a diferença.)

Note-se de passagem que o problema que Platão pretende resolver nesse ponto é o da unidade da pólis, compreendida como o maior bem desta última. E Platão o resolve por uma mudança na compreensão de certas palavras fundamentais: “meu”, “minha”, cujo sentido passa a ser o comum. Para nós, isso parece lembrar que a política é (sobretudo) uma questão de lógos ou, em uma formulação (talvez) mais provocativa: é sempre uma disputa semântica. Para corroborá-lo, talvez baste lembrar que a famosa definição de Aristóteles evocada mais acima, do homem como zóon politikón aparece, na Política, a poucas linhas de distância de outra famosa definição do que é próprio ao humano: o ser humano é o ser vivo que tem lógos – definição que, como se sabe, com muitas mediações, vai chegar a ser traduzida por (fico tentado a dizer “transubstanciada em”) “animal racional”. Ou basta lembrar que (quase) todos os lados da luta política contemporânea reivindicam para si a palavra, e uma compreensão de “democracia” – no campo da esquerda, o Zizek talvez seja uma exceção, mas certamente ambígua; deixo de lado a direita crescente que já se sente encorajada a falar contra a democracia.

Bem entendida, essa ideia não quer deixar de lado a importância fundamental das condições materiais da existência, da divisão de classes, das difusas micro e macro-relações de poder presentes em toda comunidade. Apenas chamo a atenção para o fato de que isso vem a luz e se resolve no âmbito do discurso, seja na publicidade das academias, dos parlamentos e dos diversos meios de comunicação, seja nos burburinhos de corredores, gabinetes e outros âmbitos “(mais) privados” – seja, por fim, no silêncio mais ou menos imposto pela violência que é a falta de abertura e acesso às discussões públicas, escancarada nas ditaduras, mas presente de modo por vezes muito mais pérfido, porque disfarçado, nas autodenominadas democracias.

Mas se para os gregos é o comum o âmbito originário, “natural” a partir do qual cada um pode se realizar como quem é – de modo que no comunismo de Platão o “meu” é, e precisa ser, fundamentalmente o comum –, nos modernos a condição parece se inverter: o indivíduo é o originário, o natural e a partir dele se constitui, pela construção “artificial” de pactos e contratos, a comunidade. Hobbes e Locke parecem ir claramente nessa direção; Rousseau em certos sentido também, se considerarmos que o idílico comunismo originário não é o ponto de partida da sociedade moderna, mas sim um paraíso perdido que definhou na sociedade marcada pelo conflito entre indivíduos, causado pela propriedade privada e pela consequente desigualdade social – e é esta última sociedade o ponto de partida. Nesse sentido, as instituições e o estabelecimento de uma comunidade tende a aparecer não como condição para o vir a ser livre e propriamente si mesmo, mas como limite necessário a preservar direitos naturais (quase que) pré-sociais. O outro é limite, possível impedimento ao desenvolvimento do eu privado, da interioridade, antes de ser o lugar desde o qual, como que “descentradamente” em princípio, chego à constituição incessante de uma singularidade que jamais se subtrai aquele comum, modulando-se justamente como “nó” (corporal?) deste.

Na Introdução ao Para a Crítica da Economia Política, Marx pontua acertadamente que a ideia de uma sociedade de indivíduos isolados não passa de uma “robinsonada”, de um mito no qual a ideologia burguesa confia a verdade do modo de ser da sociedade capitalista a um pretenso e conveniente estado natural. Pois se é natural, como se poderia querer modificá-lo sem que com isso a própria natureza humana em certo sentido padecesse? Marx observa então que do ponto de vista histórico se dá justo o inverso: quanto mais se recua no tempo, maior é a dependência do indivíduo em relação à sua comunidade. Mais, ainda: este chega ser mera parte da comunidade – e o indivíduo mesmo, como tal em sua (pretensa) independência com relação à sociedade, é uma produção tipicamente capitalista. Mas tal produção é ambígua: a comunidade continua sempre aí, como o lugar desde onde o indivíduo “independente” surge, e do qual ele permanece dependendo em sua independência.

Em outros termos, o indivíduo só pode se compreender como tendo uma independência e uma liberdade abstratas em uma sociedade em que os donos do capital são ou devem ser livres para investi-lo onde bem entenderem (porque a sociedade e o Estado propiciam essa liberdade) e os sem capital são “livres” para venderem o que tem a sua força de trabalho – e não mais são propriedade direta de outro ser humano. Nesse sentido, o capitalismo é o modo de produção em que todos em algum sentido são proprietários e ninguém, nenhum ser humano seria propriedade de outro – todos seriam “independentes”, independência que se daria em termos de venda do que se tem em no mercado. O comum aí é, antes de mais nada, esse mercado. Neste, em última instância, a comunidade entre as pessoas (e as coisas) se faz pela abstração daquilo que elas têm de próprias e sua redução a uma quantidade, a um equivalente contável – expresso, em última instância, em dinheiro. Mas sabemos que diferenças fundamentais e operantes nesse sistema ficam de fora nessa sua autocompreensão abstrata – dentre elas, e não por último, o fato de que há proprietários de meios de produção e aqueles que só têm a força de trabalho, de que essa desigualdade é operativa no abstrato mercado onde todos são vendedores, etc.

Bem compreendido, todo esse processo que reproduzo em linhas bastante gerais em nada desmente a ideia de que o moderno se autocompreende a partir de uma precedência do indivíduo. Isso significa que mesmo se aceitarmos essa explicação da gênese socioeconômica do modo como emerge a compreensão (ideológica) da relação indivíduo-sociedade na modernidade, ainda assim essa compreensão continua operando. A sugestão de Marx é a de que isso se dá porque o próprio modo de produção que responde por essa compreensão continua de pé. Isso parece indicar que o modo como a gente se compreende (e opera em meio a uma compreensão) ultrapassa as nossas formulações explícitas disso . E se, em todo agir, há um compreender, um tomar as coisas em um sentido (é esse o grande Outro?), então contra o capitalismo e pelo comunismo segue sendo uma luta semântica – uma luta para que o mundo ganhe, estruturalmente, um outro sentido. (De passagem: estaria aí (também) o problema do inconsciente?)

Para pensar esse sentido outro, talvez não seja uma tarefa inútil sempre voltar aos gregos – e medir a nossa proximidade e a nossa distância com relação a eles. Para isso, é preciso, quiçá, não perder de vista que o sentido de "comum" e de "próprio/privado/individual" não é o mesmo em cada caso – na contemporaneidade-modernidade (suposto que ainda estamos em certa medida nesta última) e na antiguidade grega - diferença que foi apenas esboçada no que se diz aqui, se tanto.

Assim, sem perder tais considerações de vista, no que se refere à proximidade poder-se-ia dizer que a ideia de que no princípio é o comum (que não exclui, em sua estruturação e/ou efetivação, diferenças essenciais) talvez possa render bons frutos. Já no que tange à distância, talvez o contemporâneo introduza (claramente ao menos) uma questão que é preciso ver bem se e em que medida há no grego a questão do singular. Para isso, talvez seja preciso olhar para o possível ser singular que desde o qual poderia ser pensada a ideia em Platão (abstratamente como "ente separado" que encarna perfeitamente um universal), bem como, em Aristóteles, para o singular como referência negativa (no famoso "não se conhece o singular"), mas ainda assim como referência última do conhece (o que se conhece universalmente, se conhece do singular); ademais, é o mesmo Aristóteles que afirma no princípio da obra que veio a ser conhecida como Metafísica que a "experiência" é o conhecimento (sic) do singular.

Por outro lado ainda, que o comum seja o singular, que o comunismo é a abertura do lugar para além da prisão abstrata das identidades gerais e das diferenças meramente particulares (que no fundo são o mesmo) e que, por fim, se possa aceder a uma compreensão fora dos marcos tradicionais da cognição metafísica e sobretudo científica, talvez possa ser vislumbrado com clareza se nos voltarmos, sem preconceitos religiosos, para outra face da nossa origem: o sentido do advento do Cristo.