sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

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1. A ideia de bem como princípio, porque a tarefa de definir o “útil” é o horizonte da indagação filosófica.
2. O útil, bem entendido, é o vinculante, o ser para: a possibilidade.
3. Não se trataria não só de compreender o bem (o bom, o que é bom) como o vazio por si da decisão pela singularidade, mas também como essa singularidade mesma – o ser próprio?
4. O próprio de uma época, uma vida, de uma ideia é aquilo em que ela se realiza enquanto tal.
5. Mas nisso o bem se confunde com a ideia, não? Mas isso é um problema? O bem não seria a ideia de ideia?
6. Em que sentido? (i) Não como regressão ao infinito; (ii) Sim: como círculo.
7. A ideia é o melhor (o próprio) em cada âmbito do “real” – a aura que faz do real “mais”, maximamente ele mesmo. A ideia de bem é, então, o melhor do melhor – que talvez não seja senão o ser da ideia...
8. Ora, para o ser ideia, o melhor é ser inteligível, verdadeira, etc. É isso que o bem confere a ela.
9. Mas ele não confere a unidade, que é também própria à ideia. Não? Apenas não explicitamente, no sentido de que Platão não o diz diretamente.
10. E como fica o caráter vinculante nisso tudo? O ser-para?
11. Nesse sentido, não será o bom propriamente um vazio de “substância”, e tão só o como de um vínculo: (i) o vínculo de verdade e clareza; (ii) o aberto de possibilidades (!)?
12. A indeterminação do bem (ou do bom), assim, é justamente o próprio dele: não é algo negativo – ou uma “má” negatividade –, mas sim o seu ser aberto mesmo, o ser passível de determinação e o convidar à determinação decisiva, o convidar à vida (filosófica?).
13. O bom é o convite à vida na modalidade do como de uma decisão vinculante e compromissada com o ser aberto para possibilidades – ser aberto que não é senão o bom mesmo. [O bom é, portanto, abertura que convida a compromisso com ela mesma, em que “mesma” é o todo de relações que a cada vez se estrutura uma vida].
14. Daí o papel central da justiça: ela é o compromisso com o bom, o próprio, que só vem a ser útil – verdadeiramente vinculante – quando o bom vem à (sua própria) luz.
15. Está aí a chave entre o bom e o Worumwillen. (cf. Heidegger, Da essência do fundamento)
16. Não esquecer: justo por ser o apelo ao compromisso com o ser aberto a possibilidades, o bom nunca se fecha: permanece sempre como a possibilidade para a possibilidade (isto é, o estar aberto ao possivelmente sempre outro do que “até agora” já foi, mas também, claro, ao mesmo).
17. Isso é o que dá o caráter de “futuro” ao bom, mas um futuro que pode ser também o futuro de uma outra compreensão – e, assim, de um outro ser – do “passado”, de uma nova existência mesma deste – do ponto de vista existencial, que é o fundamental, o passado jamais está fechado.
18. Aqui se encontra o sentido ético-existencial do imperativo categórico: ele é vazio não porque é universal, mas porque é a formulação universal da tarefa do humano diante do singular, se ele “quer” compreender este – e, assim, a si mesmo – como ele propriamente é.
19. Por isso, ele é “formal”, “vazio” do ponto de vista “concreto”, “indeterminado”: ele é, antes, indeterminável ou, mais ainda (muito antes), o a ser determinado a cada vez. Ele é o convite à tarefa propriamente humana, o “fazer o bem”, e sua “formalidade” só é incômoda de verdade para quem o compreende dessa maneira, para quem quer reduzir o humano – e mesmo a sua concretude – a uma definição permanente e manuseável, um “a gente”.
[20. Veja-se que o problema não é com o “a gente” – nele se funda o universal, ele a gente sempre já é em alguma medida. O problema (ético mesmo, ou inclusive) é a “abstração”, o “esquecimento” do singular e o domínio “absoluto” do “a gente”. Esse é o problema da técnica, da lógica, da filosofia analítica.]
21. A formalidade do imperativo é, pois, o que há de mais “positivo” nele – na medida, e só na medida em que se vê resguardado aí o espaço do comum incompreensível (o singular).
22. Incompreensível: não o impossível de ser compreendido, mas: (i) o que, no limite, é acolhido da compreensão como o incompreensível – e, assim, compreendido como tal (e não como mera “pedra onde a pá entorta” ou, antes, vendo aí o entortar da pá o modo como a pá compreende, “escava” a pedra como tal); (ii) o que, sobretudo, requer a cada vez o esforço de compreensão, o mobilizador, a Causa última, a Coisa mesma da compreensão.
23. Por tudo isso, o mobilizador enquanto tal é o bom: pois o ser incompreensível, singular, é o próprio do humano1 – e o decidir-se acerca disso, o como agir-compreender diante disso é justamente a questão: é bom?
[24. Todas as afirmações aqui talvez precisem voltar sobre si mesmas, isto é: o que soa como universal e peremptório é “só” um caminho para coisa, talvez o caminho ocidental (a filosofia). Por outro lado, há a compreensão – ou a fé – de que a coisa não se dá, ou é, senão (n)os seus caminhos (os caminhos a ela).]
25. A (quase) cisão entre felicidade e dever que costuma se enxergar em Kant (ao menos do ponto de vista da finitude) não viria a reboque da ideia – (talvez) pouco grega ou, ao menos, pouco platônica – de que meus desejos são o que me separa dos outros? Não estaria aí a raiz do individualismo? Do egoísmo?
26. A convicção contrária, do outro como lugar do meu desejo – o singular só é o que é em se abrindo a cada vez à singularidade (de uma vida, de uma conversa, de um amor) – o lugar próprio do grego e, quiçá, se não do cristianismo, mas do Cristo?
27. Pois talvez tudo isso não possa ser visto senão como uma interpretação conjunta – “sinótica” – do “Não julgueis para não seres julgado” com o “Amar a Deus [o incompreensível em que se confia, ou mesmo o incompreensível enquanto confiança] sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo [isto é, como o lugar mesmo em que todos se encontram e são o que são: a singularidade].” (Sobre esse ponto cf. Do Cristo e A Esquerda e o Cristo)

Março de 2013


1 Ou do ente enquanto tal e apenas revelado para si mesmo no humano? Daqui uma possível ética dos animais e, mais amplamente, uma ética diante da natureza enquanto tal.