Publicado originalmente no dia 19.02.14 em:
http://uninomade.net/tenda/midia-corporativa-a-catraca-da-democracia/
Na obra Em defesa das causas perdidas,
Zizek afirma que “não deveríamos
permitir que o inimigo definisse o campo de batalha e o que está em jogo, de
modo que acabamos nos opondo abstratamente a ele, apoiando uma cópia negativa
do que ele quer.”[1]
Transposta para o contexto das manifestações que tomam conta das ruas do Brasil
desde as jornadas de junho de 2013, essa frase não poderia nos ajudar a pensar
a relação entre os protestos e a mídia corporativa (isto é, os jornais e
revistas de maior circulação, bem como, sobretudo, as concessões de rádio e
televisão controladas por grandes capitais)?
Se não, vejamos: em linhas gerais,
podemos distinguir pelo menos três posturas básicas através das quais a mídia
corporativa procurou contar sua própria versão dos protestos. A primeira delas
consiste em tentar esvaziá-los ou minimizar sua importância, simplesmente
ignorando-os ou, não raro, incluindo-os no máximo na parte do respectivo
veículo que trata dos problemas de trânsito. Dessa maneira, o que ocupa o
primeiro plano da narrativa “jornalística” não são as reivindicações que
mobilizam os manifestantes, mas o efeito (negativo) que esta mobilização tem
para a vida “normal” da cidade.
Assim, com menor ou maior clareza,
protestos podem ser interpretados como anomalias que, no exercício regular da
política, poderiam não existir – melhor: não deveriam existir. Considerando que
o estopim dos protestos foi o aumento das passagens do transporte público, que trouxe
consigo o problema da mobilidade urbana e da garantia real (socioeconômica) do
direito de ir e vir, é no mínimo curioso notar a inversão em jogo aí: os
protestos são tomados como um problema que afeta o trânsito “normal”, quando na
verdade o “funcionamento normal” cotidiano deste é que é o problema (causado,
sobretudo, pelo uso excessivo do transporte privado) para o qual aqueles
protestos apresentam uma solução (a melhora no transporte público).
Mas aqui talvez uma segunda mudança
no campo de batalha delimitado pela mídia seja ainda mais fundamental. Pois se
é verdade que não queremos abrir mão de uma sociedade democrática; se é verdade
que se trata de ampliar e aprofundar a democracia (social, econômica e
politicamente), então as manifestações ou, antes, as mobilizações populares não
devem ser pensadas como episódios a serem eliminados. Pelo contrário: a
auto-organização da sociedade, a ocupação das ruas com o debate das questões
que dizem respeito à comunidade como um todo é elemento constitutivo indispensável
de uma comunidade que se quer democrática. Nesse caso, tratar-se-ia não de
insistir na “normalidade” das manifestações ou na sua necessidade “episódica”
no estado atual da nossa sociedade, mas na importância estrutural da
mobilização popular para a constituição de uma democracia efetiva.
É bem verdade que, mesmo abrindo
espaço para a concepção das manifestações como “anormalidade” na vida da
cidade, quando é levada a entrar no mérito da questão, a mídia tende a se valer
do discurso de que as manifestações “fazem parte da democracia”. Esse discurso
acabou surgindo, de certo modo, sobretudo quando esta adotou uma segunda
postura: a tentativa de “disputar” a pauta do movimento.
Com efeito, o aumento da mobilização
levou a um deslocamento do campo de batalha em torno das manifestações no
interior do próprio discurso midiático: não podendo mais ignorá-las ou
tratá-las como meros problemas de trânsito, a batalha então é para definir “o
que querem os manifestantes” – o que fez com que a postura da mídia oscilasse
em pouco tempo de uma condenação total a um apoio ambíguo aos protestos.
(Emblemática dessa mudança é a “retratação” de Jabor pouco tempo depois ter
condenado veementemente as manifestações)
Tratou-se de um “apoio ambíguo”
porque, embora represente o reconhecimento inegável da força das ruas, ele veio
acompanhado de um discurso que busca(va) pautar o movimento e, com isso,
tirar-lhe a força e escondê-lo no mesmo movimento em que (parcialmente) o
mostra. As estratégias nesse sentido foram (e são) variadas: ora se tentou
dizer que a manifestação é “contra tudo que está aí”, o que leva a um
esvaziamento de pautas concretas e imediatamente atingíveis (como a luta contra
o aumento da passagem); ora se disse que é “pelo próprio direito de se manifestar”,
o que leva ao risco de tomar as manifestações como algo que se esgote no
próprio movimento de se manifestar, que não espera nenhuma resposta efetiva do
poder público ou não visa constituir algo de novo e duradouro a despeito deste;
ora, enfim, tentou-se fazer com que surfassem na onda de manifestações pautas
tradicionalmente conservadoras como a oposição aos programas de transferência
de renda; a redução dos impostos; o nacionalismo exacerbado; e até uma difusa
“antipolítica”, presente na opinião comum de que “o problema são (apenas) os
políticos” (o que tende a levar a uma leitura meramente personalística do campo
político), articulada, por sua vez, com a reivindicação de uma “moralização”
abstrata da política – isto é, com uma “moralização” que desconsidera o papel
(estrutural) de corruptor desempenhado pelo (grande) capital.
Certamente essas tentativas têm
algum respaldo na composição complexa que as manifestações foram tomando (e,
quiçá, em parte já tinham ab initio)
na medida em que cresciam e outros grupos e pessoas se integravam ao movimento.
Em comum, uma espécie de insatisfação de fundo, mas que se desdobrava em uma
miríade de reivindicações concretas (ou nem tanto), por vezes contraditórias, e
não limitadas às referidas acima. Se, por ex., os relatos de militantes de
partidos de esquerda tendo suas bandeiras retiradas e sendo espancados mostram
que houve (ou há) elementos de cunho reacionário e fascista nas manifestações
(sejam eles “infiltrados” ou não), é difícil negar que as organizações da
esquerda tradicional (sindicatos e partidos, sobretudo) em geral não têm
conseguido – ou talvez, ao menos tal como sempre se estruturaram, não podem –
estar à altura dos eventos que tiveram início em junho. O quanto a mídia é
“causa” ou “expressão” de alguns desses elementos é (quase) impossível – e,
quiçá, ocioso – dizer. O que interessa é marcar de que “causas” ela toma
partido, procurando, assim, (de)limitar o campo das lutas. Mal ou bem, parece
haver algum avanço quando o mérito mesmo das mobilizações entre em jogo no
discurso midiático – avanço que, dependendo do modo como este mérito entra em
jogo, pode ser apenas aparente.
De modo mais ou menos contemporâneo
a essas duas e atravessando-as, aparece uma terceira postura: a criminalização.
Se a presença desta é clara no primeiro comportamento mencionado (as
manifestações obstruem ilegalmente o trânsito, etc.), no segundo, ela precisou,
em um primeiro momento ao menos, ser “mais sutil”. Não sendo possível condenar
os protestos tout court, a mídia operou a partir do corte entre
“manifestantes pacíficos” e “vândalos”, que, por sinal, vem se mostrando como
uma eficaz versão da velha estratégia “dividir para governar”. Os “vândalos”–
ou seus (quase) sinônimos na gramática midiática: os “mascarados”, os “black
blocs” – funcionaram desde então como nome abstrato para tudo que estragava a
“festa da democracia”, em especial os episódios de violência nos protestos, que
teriam (por si só) “afastado os cidadãos de bem” das ruas.
É talvez aqui que a advertência presente
na frase de Zizek pode ser mais útil. Pois o que tende a desaparecer sob a
máscara abstrata do nome “violência” são as diferenças essenciais à compreensão
(política) do fenômeno em causa[2]: a
diferença entre a violência dos manifestantes e a dos policiais, entre a
resistência e a repressão ativa (não raro arbitrária e desproporcional), entre
o depredação de coisas e o ataque a pessoas. A abstração de todo esse complexo
de relações vem articulada, em geral, com a abstração de todos os fatores
envolvidos para a concentração em um deles, como principal, se não única causa
do fenômeno (os vândalos). Isso permite que o campo de batalha seja dominado
por uma falsa disjunção, que escamoteia o problema: tratar-se-ia de ser “contra
o vandalismo” ou “a favor” dele. Mas, na medida em que “ser a favor do
vandalismo” é entendido como crime, parece restar apenas uma opção para quem
não quer se subtrair ao (ou, antes, ser expulso do) jogo político oficial.
O que temos assistido depois da
morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade é uma demonstração muito clara
desse tipo de operação. O que se viu (e se vê) não é a busca de justiça, mas um
inquérito policial se tornar um espetáculo tragicômico de gosto duvidoso
protagonizado por um advogado de “defesa” que é também delator de um dos seus
clientes e por dois jovens constrangidos ao desempenho do papel, prescrito por
quem comanda o show, de (simbolizar os) “vândalos”. Ao mesmo tempo, a mídia vem
promovendo, com o apoio de políticos da situação (à direita e à “esquerda”),
uma campanha por uma “repressão mais dura” dos protestos, sobretudo pela
criação de instrumentos legais ad hoc. Nisso tudo, foram
convenientemente “esquecidas” as outras mortes e as outras vítimas da
“violência nas manifestações”; esqueceu-se que a repressão policial é
comprovadamente a principal responsável pelos ferimentos e pelas mortes nos
protestos; e esqueceu-se até que dentre as vítimas da polícia estão membros da
grande imprensa.
Assim, ainda que a lógica da
criminalização não seja novidade, é preciso notar uma mudança crucial: o uso
político dessa morte trágica por parte da mídia parece mostrar que a estratégia
não é a condenação da violência nas manifestações, mas a criminalização das
manifestações tout court usando como arma o discurso abstrato sobre a
violência – assim como a criminalização de militantes e de figuras da política
institucional que, mal ou bem, apoiaram os protestos e/ou poderiam colher
dividendos políticos destes.
A princípio, os casos emblemáticos
aqui são o da militante Sininho e o do deputado federal Marcelo Freixo, do
PSOL. Mas talvez emblemático mesmo seja o caso de Caio Silva de Souza e Fábio
Raposo, os dois jovens acusados da morte de Santiago Andrade: condenados pela
mídia antes do devido processo legal, “representados” (até pouco tempo) por um
advogado que parece mais preocupado com a espetacularização do caso e seu uso
para a perseguição política e a criminalização dos protestos, seria o caso de a
esquerda (sem aspas) e os movimentos sociais não só não participarem do
linchamento público, mas se posicionarem firmemente contra qualquer tentativa
do gênero e exigir, no mínimo, o respeito aos direitos dos acusados e ao devido
processo legal.
O caso de Marcelo Freixo, todavia,
parece ser emblemático em (pelo menos) mais um sentido: como figura destacada
da esquerda, ao condenar abstratamente a “escalada da violência nas
manifestações”, ao assinar o pedido de CPI do Vandalismo, ele não teria cedido
demais o campo de batalha? Mais, ainda: uma vez que os nomes abstratos de
“vandalismo” e “violência” são as armas da criminalização das manifestações,
mais do que “apoiar uma cópia negativa do que o inimigo quer”, não estaríamos
aqui muito próximos de um passo mais nefasto – capitular diretamente diante do
que ele quer, comprando inclusive a gramática proposta por ele?
Contra essa leitura, há quem
argumente que ele “está sob os holofotes da mídia”, que “é preciso prudência”,
que ele pode “evitar a criminalização estando dentro da CPI”. Mesmo julgando
que ainda assim seria melhor arriscar ao menos recusar mais incisivamente o
título abstrato de “violência” (e o de “vandalismo”), o que é decisivo aqui são
antes os efeitos da decisão (sic) – pois, por melhores (ou piores) que sejam as
razões que levam a esta, a sua importância será medida pelo o que ela é capaz
de fazer (ou não) no espaço público e, assim, na escolha dos caminhos de uma
comunidade.
Pelo sim e pelo não, talvez seja o caso de fazer valer aqui, na
direção inversa, o que disse (e o que faz) Pablo Ortellado com relação aos
Black Blocs[3]:
ainda que discordando da sua tática, Freixo segue sendo (ainda, espero) um
companheiro (de trincheira). Com muito mais razão, o mesmo vale para Caio e
Raposo: culpados ou não, não se pode transigir nem jurídica nem politicamente
com a sua redução a bodes expiatórios e a instrumentos de criminalização dos
protestos, dos movimentos sociais, da participação popular.
Contudo, é preciso chamar a atenção
para outro ponto: este tipo de argumento em defesa do Freixo é sintomático do
que foi dito até aqui. Pois em tal argumentação, não é (só) o sistema
político(-representativo), mas é a mídia corporativa (que, de resto, pode ser
pensada como parte deste sistema) que teria o poder de influenciar na formação
de consensos (tácitos), no horizonte dos quais o debate pode ser feito e as
decisões são tomadas; de delimitar, enfim, decisivamente, o campo de ação
“possível”.
Nesse sentido, é justo dizer que a
mídia corporativa é uma das, se não a catraca que emperra a (nossa)
democratização – não raro cobrando caríssimo, a preço de coerência, de
liberdade, de alma para quem quer passar, a todo custo, para o outro lado.
Certamente as mídias alternativas oferecem hoje muitas maneiras de pular a
catraca (as possíveis inconsistências da “resolução” à jato do caso da morte de
Santiago Andrade, por ex., já aparecem por todo lado). Mas a energia que ainda
é gasta em torno das pautas que a mídia corporativa veicula, sobretudo através
das grandes concessões de televisão, mostra o quanto ele ainda é decisiva para
a constituição do debate político.
Por isso, talvez uma das muitas
contribuições que as mobilizações que começaram em junho podem dar, e quiçá uma
das mais decisivas, é a de colocar na ordem do dia a necessidade de
democratização da mídia, em especial das concessões de rádio e televisão – que,
nunca é demais lembrar, são públicas. A dobradinha entre Globo e polícia na
exploração política da morte de um membro da própria imprensa, uma espécie de
“(Não) vale a pena ver de novo” dos tempos da ditadura com cara de “A volta dos
que não foram”, mostra que não só a polícia precisa ser desmilitarizada.
Democratizar a mídia é (também) desmilitarizá-la, no sentido de remover o que
ela tem de ditadura (da comunicação), tanto na sua origem quanto na sua
estrutura.
O tamanho e a duração da tarefa são testemunhados pelo quão pouco ela avançou desde o início da
(re)democratização do Brasil, apesar do que é disposto na Constituição e dos
esforços de alguns setores da sociedade nesse sentido[4]. Todavia,
se, por um lado, a mídia corporativa ainda tem papel decisivo na delimitação do
campo em que se trava a luta política – por outro, é sobretudo a mobilização da
multidão que pode mudar as regras do jogo para que se constitua uma comunicação
enraizada, de fato, no comum.
[1] São Paulo: Boitempo, 2011. p.
148.
[2] Cf. o recente artigo de Pablo
Ortellado:
http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-bloco-dos-desobedientes,1130747,0.htm
[3] https://www.facebook.com/ortelladopablo/posts/664939046905005. Infelizmente, a recente entrevista dada por Marcelo Freixo para O Dia, que foi publicada no mesmo dia em que saía o presente artigo, coloca ainda mais em questão o fato de Marcelo Freixo estar ou não do mesmo lado da trincheira em que estão as manifestações...: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-02-19/nao-e-quebrando-bancos-que-se-destroi-o-capitalismo-afirma-marcelo-freixo.html
[4] Cf., por ex., http://www.fndc.org.br/.