quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Abaixo e à esquerda (1). Nas ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo.

Abaixo e à esquerda (1)
Nas ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo. 

Correlacionar as jornadas de junho-outubro de 2013 com os resultados das eleições de 2014 não é, como era de se esperar a essa altura, tocar em um tema novo. Quase todas as análises das eleições que foram feitas até agora, e em especial aquelas que se colocam ou pretendem colocar-se do lado esquerdo do espectro político, levaram em consideração as manifestações do ano passado. O interesse da série de notas que esse texto (espero, apenas) inaugura é contribuir para organizar e pensar o cenário político que se delineia nesse arco de um ano de lutas. Não há nenhuma pretensão de ser exaustivo; e é preciso ter sempre no horizonte que pensar é também, para dizer o mínimo, compreender o lugar do incompreensível e do impensável. Da direita para a esquerda, parece-me que se pode dizer mais ou menos o que se segue.

Houve a direita fascista, que veio às ruas nas maiores manifestações (mas, é preciso sempre lembrá-lo, não as monopolizou), e talvez tenha encontrado algum eco na eleição de quadros como Bolsonaro (RJ) e Heinze (RS), bem como em discursos como de Levy Fidelix. Digo “talvez” porque o termo “fascismo” aqui comporta (ao menos) a seguinte característica: a “escolha” de um inimigo como causa fantasmática de um problema, em contraposição ao qual, com a finalidade de aniquilar fisicamente tal inimigo, se propaga uma unidade do corpo social que se sobrepõe às e se esquece das fissuras socioeconômicas, das desigualdades da comunidade em questão.

Nas ruas, inimigos eram os políticos e partidos políticos, ditos (quase que essencialmente) corruptos e a nação brasileira deveria se unir para eliminá-los (se fisicamente, isso nem sempre era claro). Nas urnas, inimigos eram não só estes, mas também (e sobretudo) aqueles contra os quais a família (heteronormativa e patriarcal) brasileira deveria se unir: gays, lésbicas, transexuais, transgêneros (para quem se prega, se não a morte física, o internamento para “tratamento psicológico”, além do inferno durante e depois da vida, claro), assim como defensores do aborto em geral (que, até onde vi, não estão na lista dos a serem aniquilados, mas vai saber...) e, não raro, indígenas, quilombolas e “bandidos” (corporificado no velho lema, que veio à rua quase literalmente nos justiçamentos e segue subindo as favelas com bem mais literalidade (e letalidade), cujo alvo preferencial, se não exclusivo, são negros pobres: “bandido bom é bandido morto”).

Ora, como no primeiro caso os políticos são “parte do problema”, é possível imaginar que parte dos votos brancos, nulos e das abstenções (somadas, cerca de 27% do eleitorado) possa estar ligada aos fascistas da rua. Mas como, por outro lado, esse problema pode ser compreendido como um problema dos políticos e dos partidos políticos em questão, mas não do sistema político (e muito menos da democracia representativa) enquanto tal, é possível supor que esse eleitorado possa ter visto na eleição de políticos conservadores com laivos (e não poucos) de fascismo.

Todavia, não poucos preferem atribuir a eleição da maior bancada conservadora em 50 anos a um grupo mais amplo e mais difuso, que talvez constituía a maioria nas maiores manifestações de 2013. Mais ou menos identificados pela classificação antropológica precisa “coxinhas”, tal grupo seria formado por pessoas “menos acostumadas” com a lida política cotidiana, que se limitavam a comentar assuntos desse gênero entre amigxs e/ou nas redes sociais. O horizonte dessas intervenções é em geral o do senso comum mais ou menos difundido e reforçado, se não mesmo em parte criado, pelo oligopólio midiático. Tal senso comum se compõe de uma rejeição à política que vai do vago desinteresse, passando e confundindo-se com o papo de que “política não se discute” (“fundado” na infame analogia entre política, futebol e religião) até (confundir-se com) a raiva em relação aos políticos. Nisso, a referida rejeição costuma se valer, de maneira mais ou menos inconsciente, de (falsas, mas compreensíveis) indistinções entre política e políticos, entre política e eleição, entre política e Estado. Não raro, todo esse quadro é temperado com um apelo ao nacionalismo (da pátria de chuteiras, do samba, do futebol, da mulata, do povo alegre), em nome do qual todos deveriam se unir contra a corrupção (culpa exclusiva dos políticos corruptos) e por um Brasil Melhor, com mais saúde e educação (pautas que, assim em abstrato, são mesmo consensuais). Do ponto de vista socioeconômico, tais “coxinhas” estariam na “classe média”, sobretudo a “nova”, incluída no consumo nos anos do governo do PT. Do ponto de vista etário, seriam em sua grande maioria jovens.

Pois bem: é esse caldo ou, antes, esse salgado, que teria formado (predominantemente) as manifestações. Apesar de incluídos nos últimos anos, ou justamente por isso (isto é, pela consciência de que poderiam/deveriam querer mais), os coxinhas queriam mais e foram para as ruas com inúmeras pautas, lutar “contra tudo que está aí”. Repressão à parte, a falta de articulação política consistente, contudo, teria feito com que as manifestações de 2014, durante a Copa, não tivessem o mesmo fôlego. Pela mesma razão, ou por uma semelhante, o despertar do gigante teria resultado no sono das urnas, com o pesadelo da eleição de uma grande bancada conservadora, sobretudo em termos de direitos das (ditas) minorias (sexuais, de gênero, raciais), mas também no que diz respeito ao fundamentalismo religioso (evangélico e católico), à defesa aberta da ditadura, de medidas de segurança cada vez mais punitivistas e militarizantes, da volta e/ou ampliação de uma política econômica neoliberal, enfim, de um Estado inchado do ponto de vista da repressão e da criminalização dos movimentos sociais, das (ditas) minorias e da pobreza, ao mesmo tempo que enxuto no que se refere aos direitos, aos investimentos em serviços públicos, à intervenção no mercado.

Os principais responsáveis por esse quadro seriam, pois, os coxinhas. Eles são o espantalho, o sujeito-suposto-fazer-e-falar-merda dos vários espectros do político – em especial o (autoproclamado) de esquerda.

Acontece que a conta aqui, a meu ver fecha rápido demais. A deriva à direita do parlamento brasileiro não se relacionaria com a reação ao avanço, mesmo aos trancos e barrancos, da luta por direitos do movimento negro, LGBT, feminista, de favelas e periferias. Muito menos teria a ver com os erros da esquerda – em especial com as concessões e ações da esquerda no poder, ações e concessões que não raro põem em dúvida o caráter mesmo de esquerda desse poder (suposto que há poder ou, antes, governo de esquerda). A autocrítica não existe, ou é rara, ou sempre vem acompanhada de um “mas ainda assim é menos pior que...”.

Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek lembra que devemos tomar cuidado para não fazer o jogo do inimigo a ponto de acabarmos defendendo apenas uma cópia negativa do que ele quer – quando a tarefa é modificar o horizonte mesmo de coordenadas (da escolha, do desejo). Não é isso que acontece quando um Partido dos Trabalhadores, suposto que consiga se justificar no poder (e não meramente pelo poder), só possa fazê-lo na medida em que conserva(ria) certas conquistas diante de um governo pior – e não por propor novos patamares de avanço, quando as ruas abrem/abriram o horizonte para isso?

No lugar de questões desse gênero, da rara autocrítica, a “altercrítica” está por toda parte, com ou sem o argumento – ou desculpa – de que o momento tático não é esse, o da decisão eleitoral – “argumento”, para os setores que se dispuseram a essa autocrítica em outros momentos; “desculpa”, se não para a maioria, pelo menos para a ala mais poderosa da esquerda (?) no governo, que por palavras e (sobretudo) atos, continua crendo estar no rumo certo. Coxinha, claro, são os outros.


Numa próxima nota, pretendo pensar/mover a coisa mais à esquerda – o que significa, se o nome “esquerda” ainda pode nos servir de alguma coisa, movê-lo mais para baixo.

Publicado originalmente em: http://ideiaeideologia.com/nota11-10062014-rj-i/

terça-feira, 6 de maio de 2014

Culpa e resposabilidade

Culpa e Responsabilidade

(...) Se entendi bem, François, a diferença que vc faz entre responsabilidade existencial e culpa está no fato de que a primeira ideia leva em conta o fato de que toda escolha individual (em uma comunidade) envolve os outros e, nisso, as escolhas que outros fazem, além de uma série de outros processos que independem da vontade individual, de modo que podemos dizer que respondemos pela obra como um todo, embora não possamos dizer que somos "causa", ou única causa, dela. Deste lado, o do ser-causa, estaria justamente a culpa, isto é, a ideia de que se pode atribuir às escolhas de um indivíduo, e quase que somente a elas, o suceder de um certo processo, o caminho de uma instituição, etc.

Se esse quadro é faz justiça às suas ideias, me parecem que podem se seguir algumas consequências mais ou menos diretas (ou se possa fazer algumas ligações mais ou menos explícitas) - e gostaria de saber o que vc acha a respeito, ainda mais porque trata-se de um tema que também me interessa ultimamente (e não só). Em primeiro lugar, parece que podemos ter uma espécie de "heroísmo mitigado" (ou finito, ou não (semi-)divino), no sentido de que reconheço que respondo pelo todo da obra do qual participo, embora saiba que não sou a única causa dele. Talvez pudéssemos dizer que temos aí um heroísmo verdadeiramente trágico, na medida em que respondo também pelo que não escolhi, ou pelo que só tacitamente escolhi na forma de vida em que me engajei.

Em segundo lugar, parece que temos, no limite e quiçá em uma versão mais fraca, o existencialismo que Sartre parece defender no "Existencialismo é um humanismo" (que, por sua vez, se vê como uma espécie de retomada (atéia) do imperativo categórico kantiano): pois, no limite, somos responsáveis pelo mundo mesmo, como um todo - embora, uma vez mais, não possamos nos considerar causa daquilo que se segue às nossas ações. Nesse sentido, talvez mesmo o cara que se isole numa ilha deserta, isso ainda é um modo de lidar com essa responsabilidade - e não simplesmente de se livrar dela absolutamente. Por isso mesmo, o adendo entre parênteses que fiz no primeiro parágrafo "(em comunidade)" seja desnecessário: a não ser, talvez, que pudéssemos pensar em um humano que não tivesse, desde o princípio da sua vida, nenhum contato com outros seres humanos. Além de isso gerar a célebre questão sobre se e em que medida um tal ente seria propriamente humano (questão que talvez, do ponto de vista de Heidegger, deva ser respondida positivamente, na medida em que somos sobretudo nossa possibilidade), ainda assim talvez se pudesse falar que ele responde por aquilo com que se relaciona... 

Daí poderia surgir um terceiro ponto: em que medida essa caracterização de uma responsabilidade existencial seria antes uma ética ou mesmo uma posição política (ontologicamente fundamentada) do que algo que pudesse ser contido nos limites da ontologia? No seguinte sentido: não só se está dizendo que o ser humano pode existir segundo uma narrativa existencial que se paute pela noção de responsabilidade e não pela de culpa, mas se está advogando que isso é melhor (ética) com base em uma compreensão de como as coisas são (ontologia). Mais, ainda: ao se colocar isso como uma posição que possa fundar o comportamento de singulares nos âmbitos em que se decide o destino de uma comunidade como um todo, tal posição é política. (O que, diga-se de passagem, parece querer defender uma posição radicalmente democrática, na medida em que na sua posição advoga pela responsabilidade de cada um com o todo e pelo fato de o diálogo precisa ser, até o limite (e além, hehehe), privilegiado em relação à violência). Nesse caso, as condições para que um ser humano pudesse compreender, "tornar-se consciente" de que esses são modos de lidar com sua própria vida seriam totalmente relevantes, não? No caso de uma "mera" ontologia, o cara bem que poderia viver com responsabilidade existencial sem nunca ter formulado para si essa decisão tácita da sua vida. E com "formular para si" não quero dizer formular filosoficamente no sentido estrito, mas entender que suas decisões são importantes, mas não determinam uma ação; que ele é responsável pelo mundo do qual participa, etc.

Outra questão seria a de tomar cuidado (ou não?) para não compreender a diferença entre responsabilidade existencial e culpa em uma chave (ontológica) naturalística, em que a diferença entre as duas seria a diferença entre causa a qual se possa atribuir o fenômeno como um todo (necessária e suficiente, pois) e causa que contribuiria (ou não) para um determinado fenômeno (algo que seria contingentemente causa de algo). Esta última noção de causa já parece afugentar o determinismo; mas não basta isso: é preciso ver que o que está em jogo não é determinar os eventos em uma realidade tal como é em si mesma e assim conhecê-lo; mas sim, mais fundamentalmente, pensar em possíveis modos de vida - em possíveis narrativas existenciais, como vc colocou. Mas talvez pudéssemos avançar mais um passo: aquele tipo de aproximação ("naturalístico") só faz sentido no interior de uma determinada narrativa existencial - daí esta, e a existência como o que nela se configura, ser o mais fundamental, no sentido de Heidegger.

Uma última questão que me ocorre é a seguinte: poderíamos distinguir graus, níveis e/ou modos de responsabilidade, não? Por exemplo: apoiar o Blac Block via facebook implica em uma responsabilidade, ao menos, diversa da responsabilidade daqueles que vão para a rua. A tendência comum, acho, seria dizer que estes têm mais responsabilidade é quem dispôs de sua própria vida para ir lá lutar lá na rua. Sob outra perspectiva, todavia, poder-se-ia dizer que quem tem mais responsabilidade é quem apenas curte: pois abriu mão de um bom espaço de escolha individual (que poderia ter ao participar efetivamente do movimento) e o legou a outros - tornando-se, assim, ainda mais responsável pelo que esses outros fazem.

Outro exemplo menos controverso, talvez: vc seria mais responsável pelo judiciário do que eu, na medida em que decidiu (ou, de alguma maneira, chegou na sua vida à decisão) de ligar sua vida a isso, enquanto eu, não; e isso mesmo se, talvez, as circunstâncias da vida me levem a me valer do judiciário, etc. (Há que se avaliar quais circunstâncias, claro; mas me refiro àquelas que estão mais longe de um engajamento decidido em determinada forma de vida). 

Mas, ainda dentro dessa questão, surge o seguinte: suposto que possamos distinguir graus de responsabilidade e suposto que, ao que parece, qualquer processo em que nos metamos na vida não depende só de nós (da nossa decisão individual, ao menos), haveria culpa do ponto de vista existencial? Política e juridicamente poderíamos dizer que o dono de uma empresa de ônibus e o prefeito do Rio têm culpa no péssimo Estado do transporte público; mas na medida em que, a rigor, seria de uma naturalização perversa atribuir a eles a causa disso e, assim, a culpa, não seríamos levados a dizer que, do ponto de vista (ético-)existencial mais radical, a culpa não existe? Não estaria aí (e permita-me algo que pode soar como carolice e pieguice), de um ponto de vista existencial e não religioso (ao menos no sentido comum de religião), a porta aberta para a ideia que vem através do Cristo, segundo a qual todos somos redimidos pela sua morte, de que não devemos julgar (condenar, o que não significa que não podemos emitir pareceres sobre os outros e julgá-los no campo abstrato da política) e que o amor é, em última instância, o modo pelo qual podemos nos relacionar com as pessoas "concretas" em sua singularidade? Qual seria a relação entre este amor e aquele que vc mencionou em sua primeira resposta ao Luciano? (...)

Setembro de 2013

Para o texto original e a discussão completa, cf: https://www.facebook.com/notes/f%C3%A1bio-fran%C3%A7ois-fonseca/culpa-x-responsabilidade/10151579334912187

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mídia corporativa: a catraca da democracia


Publicado originalmente no dia 19.02.14 em: 
http://uninomade.net/tenda/midia-corporativa-a-catraca-da-democracia/

Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek afirma que “não deveríamos permitir que o inimigo definisse o campo de batalha e o que está em jogo, de modo que acabamos nos opondo abstratamente a ele, apoiando uma cópia negativa do que ele quer.”[1] Transposta para o contexto das manifestações que tomam conta das ruas do Brasil desde as jornadas de junho de 2013, essa frase não poderia nos ajudar a pensar a relação entre os protestos e a mídia corporativa (isto é, os jornais e revistas de maior circulação, bem como, sobretudo, as concessões de rádio e televisão controladas por grandes capitais)?

Se não, vejamos: em linhas gerais, podemos distinguir pelo menos três posturas básicas através das quais a mídia corporativa procurou contar sua própria versão dos protestos. A primeira delas consiste em tentar esvaziá-los ou minimizar sua importância, simplesmente ignorando-os ou, não raro, incluindo-os no máximo na parte do respectivo veículo que trata dos problemas de trânsito. Dessa maneira, o que ocupa o primeiro plano da narrativa “jornalística” não são as reivindicações que mobilizam os manifestantes, mas o efeito (negativo) que esta mobilização tem para a vida “normal” da cidade.

Assim, com menor ou maior clareza, protestos podem ser interpretados como anomalias que, no exercício regular da política, poderiam não existir – melhor: não deveriam existir. Considerando que o estopim dos protestos foi o aumento das passagens do transporte público, que trouxe consigo o problema da mobilidade urbana e da garantia real (socioeconômica) do direito de ir e vir, é no mínimo curioso notar a inversão em jogo aí: os protestos são tomados como um problema que afeta o trânsito “normal”, quando na verdade o “funcionamento normal” cotidiano deste é que é o problema (causado, sobretudo, pelo uso excessivo do transporte privado) para o qual aqueles protestos apresentam uma solução (a melhora no transporte público).

Mas aqui talvez uma segunda mudança no campo de batalha delimitado pela mídia seja ainda mais fundamental. Pois se é verdade que não queremos abrir mão de uma sociedade democrática; se é verdade que se trata de ampliar e aprofundar a democracia (social, econômica e politicamente), então as manifestações ou, antes, as mobilizações populares não devem ser pensadas como episódios a serem eliminados. Pelo contrário: a auto-organização da sociedade, a ocupação das ruas com o debate das questões que dizem respeito à comunidade como um todo é elemento constitutivo indispensável de uma comunidade que se quer democrática. Nesse caso, tratar-se-ia não de insistir na “normalidade” das manifestações ou na sua necessidade “episódica” no estado atual da nossa sociedade, mas na importância estrutural da mobilização popular para a constituição de uma democracia efetiva.

É bem verdade que, mesmo abrindo espaço para a concepção das manifestações como “anormalidade” na vida da cidade, quando é levada a entrar no mérito da questão, a mídia tende a se valer do discurso de que as manifestações “fazem parte da democracia”. Esse discurso acabou surgindo, de certo modo, sobretudo quando esta adotou uma segunda postura: a tentativa de “disputar” a pauta do movimento.

Com efeito, o aumento da mobilização levou a um deslocamento do campo de batalha em torno das manifestações no interior do próprio discurso midiático: não podendo mais ignorá-las ou tratá-las como meros problemas de trânsito, a batalha então é para definir “o que querem os manifestantes” – o que fez com que a postura da mídia oscilasse em pouco tempo de uma condenação total a um apoio ambíguo aos protestos. (Emblemática dessa mudança é a “retratação” de Jabor pouco tempo depois ter condenado veementemente as manifestações)  

Tratou-se de um “apoio ambíguo” porque, embora represente o reconhecimento inegável da força das ruas, ele veio acompanhado de um discurso que busca(va) pautar o movimento e, com isso, tirar-lhe a força e escondê-lo no mesmo movimento em que (parcialmente) o mostra. As estratégias nesse sentido foram (e são) variadas: ora se tentou dizer que a manifestação é “contra tudo que está aí”, o que leva a um esvaziamento de pautas concretas e imediatamente atingíveis (como a luta contra o aumento da passagem); ora se disse que é “pelo próprio direito de se manifestar”, o que leva ao risco de tomar as manifestações como algo que se esgote no próprio movimento de se manifestar, que não espera nenhuma resposta efetiva do poder público ou não visa constituir algo de novo e duradouro a despeito deste; ora, enfim, tentou-se fazer com que surfassem na onda de manifestações pautas tradicionalmente conservadoras como a oposição aos programas de transferência de renda; a redução dos impostos; o nacionalismo exacerbado; e até uma difusa “antipolítica”, presente na opinião comum de que “o problema são (apenas) os políticos” (o que tende a levar a uma leitura meramente personalística do campo político), articulada, por sua vez, com a reivindicação de uma “moralização” abstrata da política – isto é, com uma “moralização” que desconsidera o papel (estrutural) de corruptor desempenhado pelo (grande) capital.

Certamente essas tentativas têm algum respaldo na composição complexa que as manifestações foram tomando (e, quiçá, em parte já tinham ab initio) na medida em que cresciam e outros grupos e pessoas se integravam ao movimento. Em comum, uma espécie de insatisfação de fundo, mas que se desdobrava em uma miríade de reivindicações concretas (ou nem tanto), por vezes contraditórias, e não limitadas às referidas acima. Se, por ex., os relatos de militantes de partidos de esquerda tendo suas bandeiras retiradas e sendo espancados mostram que houve (ou há) elementos de cunho reacionário e fascista nas manifestações (sejam eles “infiltrados” ou não), é difícil negar que as organizações da esquerda tradicional (sindicatos e partidos, sobretudo) em geral não têm conseguido – ou talvez, ao menos tal como sempre se estruturaram, não podem – estar à altura dos eventos que tiveram início em junho. O quanto a mídia é “causa” ou “expressão” de alguns desses elementos é (quase) impossível – e, quiçá, ocioso – dizer. O que interessa é marcar de que “causas” ela toma partido, procurando, assim, (de)limitar o campo das lutas. Mal ou bem, parece haver algum avanço quando o mérito mesmo das mobilizações entre em jogo no discurso midiático – avanço que, dependendo do modo como este mérito entra em jogo, pode ser apenas aparente.

De modo mais ou menos contemporâneo a essas duas e atravessando-as, aparece uma terceira postura: a criminalização. Se a presença desta é clara no primeiro comportamento mencionado (as manifestações obstruem ilegalmente o trânsito, etc.), no segundo, ela precisou, em um primeiro momento ao menos, ser “mais sutil”. Não sendo possível condenar os protestos tout court, a mídia operou a partir do corte entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”, que, por sinal, vem se mostrando como uma eficaz versão da velha estratégia “dividir para governar”. Os “vândalos”– ou seus (quase) sinônimos na gramática midiática: os “mascarados”, os “black blocs” – funcionaram desde então como nome abstrato para tudo que estragava a “festa da democracia”, em especial os episódios de violência nos protestos, que teriam (por si só) “afastado os cidadãos de bem” das ruas.

É talvez aqui que a advertência presente na frase de Zizek pode ser mais útil. Pois o que tende a desaparecer sob a máscara abstrata do nome “violência” são as diferenças essenciais à compreensão (política) do fenômeno em causa[2]: a diferença entre a violência dos manifestantes e a dos policiais, entre a resistência e a repressão ativa (não raro arbitrária e desproporcional), entre o depredação de coisas e o ataque a pessoas. A abstração de todo esse complexo de relações vem articulada, em geral, com a abstração de todos os fatores envolvidos para a concentração em um deles, como principal, se não única causa do fenômeno (os vândalos). Isso permite que o campo de batalha seja dominado por uma falsa disjunção, que escamoteia o problema: tratar-se-ia de ser “contra o vandalismo” ou “a favor” dele. Mas, na medida em que “ser a favor do vandalismo” é entendido como crime, parece restar apenas uma opção para quem não quer se subtrair ao (ou, antes, ser expulso do) jogo político oficial.

O que temos assistido depois da morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade é uma demonstração muito clara desse tipo de operação. O que se viu (e se vê) não é a busca de justiça, mas um inquérito policial se tornar um espetáculo tragicômico de gosto duvidoso protagonizado por um advogado de “defesa” que é também delator de um dos seus clientes e por dois jovens constrangidos ao desempenho do papel, prescrito por quem comanda o show, de (simbolizar os) “vândalos”. Ao mesmo tempo, a mídia vem promovendo, com o apoio de políticos da situação (à direita e à “esquerda”), uma campanha por uma “repressão mais dura” dos protestos, sobretudo pela criação de instrumentos legais ad hoc. Nisso tudo, foram convenientemente “esquecidas” as outras mortes e as outras vítimas da “violência nas manifestações”; esqueceu-se que a repressão policial é comprovadamente a principal responsável pelos ferimentos e pelas mortes nos protestos; e esqueceu-se até que dentre as vítimas da polícia estão membros da grande imprensa.

Assim, ainda que a lógica da criminalização não seja novidade, é preciso notar uma mudança crucial: o uso político dessa morte trágica por parte da mídia parece mostrar que a estratégia não é a condenação da violência nas manifestações, mas a criminalização das manifestações tout court usando como arma o discurso abstrato sobre a violência – assim como a criminalização de militantes e de figuras da política institucional que, mal ou bem, apoiaram os protestos e/ou poderiam colher dividendos políticos destes.

A princípio, os casos emblemáticos aqui são o da militante Sininho e o do deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL. Mas talvez emblemático mesmo seja o caso de Caio Silva de Souza e Fábio Raposo, os dois jovens acusados da morte de Santiago Andrade: condenados pela mídia antes do devido processo legal, “representados” (até pouco tempo) por um advogado que parece mais preocupado com a espetacularização do caso e seu uso para a perseguição política e a criminalização dos protestos, seria o caso de a esquerda (sem aspas) e os movimentos sociais não só não participarem do linchamento público, mas se posicionarem firmemente contra qualquer tentativa do gênero e exigir, no mínimo, o respeito aos direitos dos acusados e ao devido processo legal.

O caso de Marcelo Freixo, todavia, parece ser emblemático em (pelo menos) mais um sentido: como figura destacada da esquerda, ao condenar abstratamente a “escalada da violência nas manifestações”, ao assinar o pedido de CPI do Vandalismo, ele não teria cedido demais o campo de batalha? Mais, ainda: uma vez que os nomes abstratos de “vandalismo” e “violência” são as armas da criminalização das manifestações, mais do que “apoiar uma cópia negativa do que o inimigo quer”, não estaríamos aqui muito próximos de um passo mais nefasto – capitular diretamente diante do que ele quer, comprando inclusive a gramática proposta por ele?

Contra essa leitura, há quem argumente que ele “está sob os holofotes da mídia”, que “é preciso prudência”, que ele pode “evitar a criminalização estando dentro da CPI”. Mesmo julgando que ainda assim seria melhor arriscar ao menos recusar mais incisivamente o título abstrato de “violência” (e o de “vandalismo”), o que é decisivo aqui são antes os efeitos da decisão (sic) – pois, por melhores (ou piores) que sejam as razões que levam a esta, a sua importância será medida pelo o que ela é capaz de fazer (ou não) no espaço público e, assim, na escolha dos caminhos de uma comunidade. 

Pelo sim e pelo não, talvez seja o caso de fazer valer aqui, na direção inversa, o que disse (e o que faz) Pablo Ortellado com relação aos Black Blocs[3]: ainda que discordando da sua tática, Freixo segue sendo (ainda, espero) um companheiro (de trincheira). Com muito mais razão, o mesmo vale para Caio e Raposo: culpados ou não, não se pode transigir nem jurídica nem politicamente com a sua redução a bodes expiatórios e a instrumentos de criminalização dos protestos, dos movimentos sociais, da participação popular.

Contudo, é preciso chamar a atenção para outro ponto: este tipo de argumento em defesa do Freixo é sintomático do que foi dito até aqui. Pois em tal argumentação, não é (só) o sistema político(-representativo), mas é a mídia corporativa (que, de resto, pode ser pensada como parte deste sistema) que teria o poder de influenciar na formação de consensos (tácitos), no horizonte dos quais o debate pode ser feito e as decisões são tomadas; de delimitar, enfim, decisivamente, o campo de ação “possível”.

Nesse sentido, é justo dizer que a mídia corporativa é uma das, se não a catraca que emperra a (nossa) democratização – não raro cobrando caríssimo, a preço de coerência, de liberdade, de alma para quem quer passar, a todo custo, para o outro lado. Certamente as mídias alternativas oferecem hoje muitas maneiras de pular a catraca (as possíveis inconsistências da “resolução” à jato do caso da morte de Santiago Andrade, por ex., já aparecem por todo lado). Mas a energia que ainda é gasta em torno das pautas que a mídia corporativa veicula, sobretudo através das grandes concessões de televisão, mostra o quanto ele ainda é decisiva para a constituição do debate político.

Por isso, talvez uma das muitas contribuições que as mobilizações que começaram em junho podem dar, e quiçá uma das mais decisivas, é a de colocar na ordem do dia a necessidade de democratização da mídia, em especial das concessões de rádio e televisão – que, nunca é demais lembrar, são públicas. A dobradinha entre Globo e polícia na exploração política da morte de um membro da própria imprensa, uma espécie de “(Não) vale a pena ver de novo” dos tempos da ditadura com cara de “A volta dos que não foram”, mostra que não só a polícia precisa ser desmilitarizada. Democratizar a mídia é (também) desmilitarizá-la, no sentido de remover o que ela tem de ditadura (da comunicação), tanto na sua origem quanto na sua estrutura.

O tamanho e a duração da tarefa são testemunhados pelo quão pouco ela avançou desde o início da (re)democratização do Brasil, apesar do que é disposto na Constituição e dos esforços de alguns setores da sociedade nesse sentido[4]. Todavia, se, por um lado, a mídia corporativa ainda tem papel decisivo na delimitação do campo em que se trava a luta política – por outro, é sobretudo a mobilização da multidão que pode mudar as regras do jogo para que se constitua uma comunicação enraizada, de fato, no comum.




[1] São Paulo: Boitempo, 2011. p. 148.
[2] Cf. o recente artigo de Pablo Ortellado: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-bloco-dos-desobedientes,1130747,0.htm
[3] https://www.facebook.com/ortelladopablo/posts/664939046905005. Infelizmente, a recente entrevista dada por Marcelo Freixo para O Dia, que foi publicada no mesmo dia em que saía o presente artigo, coloca ainda mais em questão o fato de Marcelo Freixo estar ou não do mesmo lado da trincheira em que estão as manifestações...: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-02-19/nao-e-quebrando-bancos-que-se-destroi-o-capitalismo-afirma-marcelo-freixo.html
[4] Cf., por ex., http://www.fndc.org.br/.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

...

1. A ideia de bem como princípio, porque a tarefa de definir o “útil” é o horizonte da indagação filosófica.
2. O útil, bem entendido, é o vinculante, o ser para: a possibilidade.
3. Não se trataria não só de compreender o bem (o bom, o que é bom) como o vazio por si da decisão pela singularidade, mas também como essa singularidade mesma – o ser próprio?
4. O próprio de uma época, uma vida, de uma ideia é aquilo em que ela se realiza enquanto tal.
5. Mas nisso o bem se confunde com a ideia, não? Mas isso é um problema? O bem não seria a ideia de ideia?
6. Em que sentido? (i) Não como regressão ao infinito; (ii) Sim: como círculo.
7. A ideia é o melhor (o próprio) em cada âmbito do “real” – a aura que faz do real “mais”, maximamente ele mesmo. A ideia de bem é, então, o melhor do melhor – que talvez não seja senão o ser da ideia...
8. Ora, para o ser ideia, o melhor é ser inteligível, verdadeira, etc. É isso que o bem confere a ela.
9. Mas ele não confere a unidade, que é também própria à ideia. Não? Apenas não explicitamente, no sentido de que Platão não o diz diretamente.
10. E como fica o caráter vinculante nisso tudo? O ser-para?
11. Nesse sentido, não será o bom propriamente um vazio de “substância”, e tão só o como de um vínculo: (i) o vínculo de verdade e clareza; (ii) o aberto de possibilidades (!)?
12. A indeterminação do bem (ou do bom), assim, é justamente o próprio dele: não é algo negativo – ou uma “má” negatividade –, mas sim o seu ser aberto mesmo, o ser passível de determinação e o convidar à determinação decisiva, o convidar à vida (filosófica?).
13. O bom é o convite à vida na modalidade do como de uma decisão vinculante e compromissada com o ser aberto para possibilidades – ser aberto que não é senão o bom mesmo. [O bom é, portanto, abertura que convida a compromisso com ela mesma, em que “mesma” é o todo de relações que a cada vez se estrutura uma vida].
14. Daí o papel central da justiça: ela é o compromisso com o bom, o próprio, que só vem a ser útil – verdadeiramente vinculante – quando o bom vem à (sua própria) luz.
15. Está aí a chave entre o bom e o Worumwillen. (cf. Heidegger, Da essência do fundamento)
16. Não esquecer: justo por ser o apelo ao compromisso com o ser aberto a possibilidades, o bom nunca se fecha: permanece sempre como a possibilidade para a possibilidade (isto é, o estar aberto ao possivelmente sempre outro do que “até agora” já foi, mas também, claro, ao mesmo).
17. Isso é o que dá o caráter de “futuro” ao bom, mas um futuro que pode ser também o futuro de uma outra compreensão – e, assim, de um outro ser – do “passado”, de uma nova existência mesma deste – do ponto de vista existencial, que é o fundamental, o passado jamais está fechado.
18. Aqui se encontra o sentido ético-existencial do imperativo categórico: ele é vazio não porque é universal, mas porque é a formulação universal da tarefa do humano diante do singular, se ele “quer” compreender este – e, assim, a si mesmo – como ele propriamente é.
19. Por isso, ele é “formal”, “vazio” do ponto de vista “concreto”, “indeterminado”: ele é, antes, indeterminável ou, mais ainda (muito antes), o a ser determinado a cada vez. Ele é o convite à tarefa propriamente humana, o “fazer o bem”, e sua “formalidade” só é incômoda de verdade para quem o compreende dessa maneira, para quem quer reduzir o humano – e mesmo a sua concretude – a uma definição permanente e manuseável, um “a gente”.
[20. Veja-se que o problema não é com o “a gente” – nele se funda o universal, ele a gente sempre já é em alguma medida. O problema (ético mesmo, ou inclusive) é a “abstração”, o “esquecimento” do singular e o domínio “absoluto” do “a gente”. Esse é o problema da técnica, da lógica, da filosofia analítica.]
21. A formalidade do imperativo é, pois, o que há de mais “positivo” nele – na medida, e só na medida em que se vê resguardado aí o espaço do comum incompreensível (o singular).
22. Incompreensível: não o impossível de ser compreendido, mas: (i) o que, no limite, é acolhido da compreensão como o incompreensível – e, assim, compreendido como tal (e não como mera “pedra onde a pá entorta” ou, antes, vendo aí o entortar da pá o modo como a pá compreende, “escava” a pedra como tal); (ii) o que, sobretudo, requer a cada vez o esforço de compreensão, o mobilizador, a Causa última, a Coisa mesma da compreensão.
23. Por tudo isso, o mobilizador enquanto tal é o bom: pois o ser incompreensível, singular, é o próprio do humano1 – e o decidir-se acerca disso, o como agir-compreender diante disso é justamente a questão: é bom?
[24. Todas as afirmações aqui talvez precisem voltar sobre si mesmas, isto é: o que soa como universal e peremptório é “só” um caminho para coisa, talvez o caminho ocidental (a filosofia). Por outro lado, há a compreensão – ou a fé – de que a coisa não se dá, ou é, senão (n)os seus caminhos (os caminhos a ela).]
25. A (quase) cisão entre felicidade e dever que costuma se enxergar em Kant (ao menos do ponto de vista da finitude) não viria a reboque da ideia – (talvez) pouco grega ou, ao menos, pouco platônica – de que meus desejos são o que me separa dos outros? Não estaria aí a raiz do individualismo? Do egoísmo?
26. A convicção contrária, do outro como lugar do meu desejo – o singular só é o que é em se abrindo a cada vez à singularidade (de uma vida, de uma conversa, de um amor) – o lugar próprio do grego e, quiçá, se não do cristianismo, mas do Cristo?
27. Pois talvez tudo isso não possa ser visto senão como uma interpretação conjunta – “sinótica” – do “Não julgueis para não seres julgado” com o “Amar a Deus [o incompreensível em que se confia, ou mesmo o incompreensível enquanto confiança] sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo [isto é, como o lugar mesmo em que todos se encontram e são o que são: a singularidade].” (Sobre esse ponto cf. Do Cristo e A Esquerda e o Cristo)

Março de 2013


1 Ou do ente enquanto tal e apenas revelado para si mesmo no humano? Daqui uma possível ética dos animais e, mais amplamente, uma ética diante da natureza enquanto tal.