terça-feira, 6 de maio de 2014

Culpa e resposabilidade

Culpa e Responsabilidade

(...) Se entendi bem, François, a diferença que vc faz entre responsabilidade existencial e culpa está no fato de que a primeira ideia leva em conta o fato de que toda escolha individual (em uma comunidade) envolve os outros e, nisso, as escolhas que outros fazem, além de uma série de outros processos que independem da vontade individual, de modo que podemos dizer que respondemos pela obra como um todo, embora não possamos dizer que somos "causa", ou única causa, dela. Deste lado, o do ser-causa, estaria justamente a culpa, isto é, a ideia de que se pode atribuir às escolhas de um indivíduo, e quase que somente a elas, o suceder de um certo processo, o caminho de uma instituição, etc.

Se esse quadro é faz justiça às suas ideias, me parecem que podem se seguir algumas consequências mais ou menos diretas (ou se possa fazer algumas ligações mais ou menos explícitas) - e gostaria de saber o que vc acha a respeito, ainda mais porque trata-se de um tema que também me interessa ultimamente (e não só). Em primeiro lugar, parece que podemos ter uma espécie de "heroísmo mitigado" (ou finito, ou não (semi-)divino), no sentido de que reconheço que respondo pelo todo da obra do qual participo, embora saiba que não sou a única causa dele. Talvez pudéssemos dizer que temos aí um heroísmo verdadeiramente trágico, na medida em que respondo também pelo que não escolhi, ou pelo que só tacitamente escolhi na forma de vida em que me engajei.

Em segundo lugar, parece que temos, no limite e quiçá em uma versão mais fraca, o existencialismo que Sartre parece defender no "Existencialismo é um humanismo" (que, por sua vez, se vê como uma espécie de retomada (atéia) do imperativo categórico kantiano): pois, no limite, somos responsáveis pelo mundo mesmo, como um todo - embora, uma vez mais, não possamos nos considerar causa daquilo que se segue às nossas ações. Nesse sentido, talvez mesmo o cara que se isole numa ilha deserta, isso ainda é um modo de lidar com essa responsabilidade - e não simplesmente de se livrar dela absolutamente. Por isso mesmo, o adendo entre parênteses que fiz no primeiro parágrafo "(em comunidade)" seja desnecessário: a não ser, talvez, que pudéssemos pensar em um humano que não tivesse, desde o princípio da sua vida, nenhum contato com outros seres humanos. Além de isso gerar a célebre questão sobre se e em que medida um tal ente seria propriamente humano (questão que talvez, do ponto de vista de Heidegger, deva ser respondida positivamente, na medida em que somos sobretudo nossa possibilidade), ainda assim talvez se pudesse falar que ele responde por aquilo com que se relaciona... 

Daí poderia surgir um terceiro ponto: em que medida essa caracterização de uma responsabilidade existencial seria antes uma ética ou mesmo uma posição política (ontologicamente fundamentada) do que algo que pudesse ser contido nos limites da ontologia? No seguinte sentido: não só se está dizendo que o ser humano pode existir segundo uma narrativa existencial que se paute pela noção de responsabilidade e não pela de culpa, mas se está advogando que isso é melhor (ética) com base em uma compreensão de como as coisas são (ontologia). Mais, ainda: ao se colocar isso como uma posição que possa fundar o comportamento de singulares nos âmbitos em que se decide o destino de uma comunidade como um todo, tal posição é política. (O que, diga-se de passagem, parece querer defender uma posição radicalmente democrática, na medida em que na sua posição advoga pela responsabilidade de cada um com o todo e pelo fato de o diálogo precisa ser, até o limite (e além, hehehe), privilegiado em relação à violência). Nesse caso, as condições para que um ser humano pudesse compreender, "tornar-se consciente" de que esses são modos de lidar com sua própria vida seriam totalmente relevantes, não? No caso de uma "mera" ontologia, o cara bem que poderia viver com responsabilidade existencial sem nunca ter formulado para si essa decisão tácita da sua vida. E com "formular para si" não quero dizer formular filosoficamente no sentido estrito, mas entender que suas decisões são importantes, mas não determinam uma ação; que ele é responsável pelo mundo do qual participa, etc.

Outra questão seria a de tomar cuidado (ou não?) para não compreender a diferença entre responsabilidade existencial e culpa em uma chave (ontológica) naturalística, em que a diferença entre as duas seria a diferença entre causa a qual se possa atribuir o fenômeno como um todo (necessária e suficiente, pois) e causa que contribuiria (ou não) para um determinado fenômeno (algo que seria contingentemente causa de algo). Esta última noção de causa já parece afugentar o determinismo; mas não basta isso: é preciso ver que o que está em jogo não é determinar os eventos em uma realidade tal como é em si mesma e assim conhecê-lo; mas sim, mais fundamentalmente, pensar em possíveis modos de vida - em possíveis narrativas existenciais, como vc colocou. Mas talvez pudéssemos avançar mais um passo: aquele tipo de aproximação ("naturalístico") só faz sentido no interior de uma determinada narrativa existencial - daí esta, e a existência como o que nela se configura, ser o mais fundamental, no sentido de Heidegger.

Uma última questão que me ocorre é a seguinte: poderíamos distinguir graus, níveis e/ou modos de responsabilidade, não? Por exemplo: apoiar o Blac Block via facebook implica em uma responsabilidade, ao menos, diversa da responsabilidade daqueles que vão para a rua. A tendência comum, acho, seria dizer que estes têm mais responsabilidade é quem dispôs de sua própria vida para ir lá lutar lá na rua. Sob outra perspectiva, todavia, poder-se-ia dizer que quem tem mais responsabilidade é quem apenas curte: pois abriu mão de um bom espaço de escolha individual (que poderia ter ao participar efetivamente do movimento) e o legou a outros - tornando-se, assim, ainda mais responsável pelo que esses outros fazem.

Outro exemplo menos controverso, talvez: vc seria mais responsável pelo judiciário do que eu, na medida em que decidiu (ou, de alguma maneira, chegou na sua vida à decisão) de ligar sua vida a isso, enquanto eu, não; e isso mesmo se, talvez, as circunstâncias da vida me levem a me valer do judiciário, etc. (Há que se avaliar quais circunstâncias, claro; mas me refiro àquelas que estão mais longe de um engajamento decidido em determinada forma de vida). 

Mas, ainda dentro dessa questão, surge o seguinte: suposto que possamos distinguir graus de responsabilidade e suposto que, ao que parece, qualquer processo em que nos metamos na vida não depende só de nós (da nossa decisão individual, ao menos), haveria culpa do ponto de vista existencial? Política e juridicamente poderíamos dizer que o dono de uma empresa de ônibus e o prefeito do Rio têm culpa no péssimo Estado do transporte público; mas na medida em que, a rigor, seria de uma naturalização perversa atribuir a eles a causa disso e, assim, a culpa, não seríamos levados a dizer que, do ponto de vista (ético-)existencial mais radical, a culpa não existe? Não estaria aí (e permita-me algo que pode soar como carolice e pieguice), de um ponto de vista existencial e não religioso (ao menos no sentido comum de religião), a porta aberta para a ideia que vem através do Cristo, segundo a qual todos somos redimidos pela sua morte, de que não devemos julgar (condenar, o que não significa que não podemos emitir pareceres sobre os outros e julgá-los no campo abstrato da política) e que o amor é, em última instância, o modo pelo qual podemos nos relacionar com as pessoas "concretas" em sua singularidade? Qual seria a relação entre este amor e aquele que vc mencionou em sua primeira resposta ao Luciano? (...)

Setembro de 2013

Para o texto original e a discussão completa, cf: https://www.facebook.com/notes/f%C3%A1bio-fran%C3%A7ois-fonseca/culpa-x-responsabilidade/10151579334912187