Culpa
e Responsabilidade
(...)
Se entendi bem, François, a diferença que vc faz entre
responsabilidade existencial e culpa está no fato de que a primeira
ideia leva em conta o fato de que toda escolha individual (em uma
comunidade) envolve os outros e, nisso, as escolhas que outros fazem,
além de uma série de outros processos que independem da vontade
individual, de modo que podemos dizer que respondemos pela obra como
um todo, embora não possamos dizer que somos "causa", ou
única causa, dela. Deste lado, o do ser-causa, estaria justamente a
culpa, isto é, a ideia de que se pode atribuir às escolhas de um
indivíduo, e quase que somente a elas, o suceder de um certo
processo, o caminho de uma instituição, etc.
Se
esse quadro é faz justiça às suas ideias, me parecem que podem se
seguir algumas consequências mais ou menos diretas (ou se possa
fazer algumas ligações mais ou menos explícitas) - e gostaria de
saber o que vc acha a respeito, ainda mais porque trata-se de um tema
que também me interessa ultimamente (e não só). Em primeiro lugar,
parece que podemos ter uma espécie de "heroísmo mitigado"
(ou finito, ou não (semi-)divino), no sentido de que reconheço que
respondo pelo todo da obra do qual participo, embora saiba que não
sou a única causa dele. Talvez pudéssemos dizer que temos aí um
heroísmo verdadeiramente trágico, na medida em que respondo também
pelo que não escolhi, ou pelo que só tacitamente escolhi na forma
de vida em que me engajei.
Em
segundo lugar, parece que temos, no limite e quiçá em uma versão
mais fraca, o existencialismo que Sartre parece defender no
"Existencialismo é um humanismo" (que, por sua vez, se vê
como uma espécie de retomada (atéia) do imperativo categórico
kantiano): pois, no limite, somos responsáveis pelo mundo mesmo,
como um todo - embora, uma vez mais, não possamos nos considerar
causa daquilo que se segue às nossas ações. Nesse sentido, talvez
mesmo o cara que se isole numa ilha deserta, isso ainda é um modo de
lidar com essa responsabilidade - e não simplesmente de se livrar
dela absolutamente. Por isso mesmo, o adendo entre parênteses que
fiz no primeiro parágrafo "(em comunidade)" seja
desnecessário: a não ser, talvez, que pudéssemos pensar em um
humano que não tivesse, desde o princípio da sua vida, nenhum
contato com outros seres humanos. Além de isso gerar a célebre
questão sobre se e em que medida um tal ente seria propriamente
humano (questão que talvez, do ponto de vista de Heidegger, deva ser
respondida positivamente, na medida em que somos sobretudo nossa
possibilidade), ainda assim talvez se pudesse falar que ele responde
por aquilo com que se relaciona...
Daí
poderia surgir um terceiro ponto: em que medida essa caracterização
de uma responsabilidade existencial seria antes uma ética ou mesmo
uma posição política (ontologicamente fundamentada) do que algo
que pudesse ser contido nos limites da ontologia? No seguinte
sentido: não só se está dizendo que o ser humano pode existir
segundo uma narrativa existencial que se paute pela noção de
responsabilidade e não pela de culpa, mas se está advogando que
isso é melhor (ética) com base em uma compreensão de como as
coisas são (ontologia). Mais, ainda: ao se colocar isso como uma
posição que possa fundar o comportamento de singulares nos âmbitos
em que se decide o destino de uma comunidade como um todo, tal
posição é política. (O que, diga-se de passagem, parece querer
defender uma posição radicalmente democrática, na medida em que na
sua posição advoga pela responsabilidade de cada um com o todo e
pelo fato de o diálogo precisa ser, até o limite (e além, hehehe),
privilegiado em relação à violência). Nesse caso, as condições
para que um ser humano pudesse compreender, "tornar-se
consciente" de que esses são modos de lidar com sua própria
vida seriam totalmente relevantes, não? No caso de uma "mera"
ontologia, o cara bem que poderia viver com responsabilidade
existencial sem nunca ter formulado para si essa decisão tácita da
sua vida. E com "formular para si" não quero dizer
formular filosoficamente no sentido estrito, mas entender que suas
decisões são importantes, mas não determinam uma ação; que ele é
responsável pelo mundo do qual participa, etc.
Outra
questão seria a de tomar cuidado (ou não?) para não compreender a
diferença entre responsabilidade existencial e culpa em uma chave
(ontológica) naturalística, em que a diferença entre as duas seria
a diferença entre causa a qual se possa atribuir o fenômeno como um
todo (necessária e suficiente, pois) e causa que contribuiria (ou
não) para um determinado fenômeno (algo que seria contingentemente
causa de algo). Esta última noção de causa já parece afugentar o
determinismo; mas não basta isso: é preciso ver que o que está em
jogo não é determinar os eventos em uma realidade tal como é em si
mesma e assim conhecê-lo; mas sim, mais fundamentalmente, pensar em
possíveis modos de vida - em possíveis narrativas existenciais,
como vc colocou. Mas talvez pudéssemos avançar mais um passo:
aquele tipo de aproximação ("naturalístico") só faz
sentido no interior de uma determinada narrativa existencial - daí
esta, e a existência como o que nela se configura, ser o mais
fundamental, no sentido de Heidegger.
Uma
última questão que me ocorre é a seguinte: poderíamos distinguir
graus, níveis e/ou modos de responsabilidade, não? Por exemplo:
apoiar o Blac Block via facebook implica em uma responsabilidade, ao
menos, diversa da responsabilidade daqueles que vão para a rua. A
tendência comum, acho, seria dizer que estes têm mais
responsabilidade é quem dispôs de sua própria vida para ir lá
lutar lá na rua. Sob outra perspectiva, todavia, poder-se-ia dizer
que quem tem mais responsabilidade é quem apenas curte: pois abriu
mão de um bom espaço de escolha individual (que poderia ter ao
participar efetivamente do movimento) e o legou a outros -
tornando-se, assim, ainda mais responsável pelo que esses outros
fazem.
Outro
exemplo menos controverso, talvez: vc seria mais responsável pelo
judiciário do que eu, na medida em que decidiu (ou, de alguma
maneira, chegou na sua vida à decisão) de ligar sua vida a isso,
enquanto eu, não; e isso mesmo se, talvez, as circunstâncias da
vida me levem a me valer do judiciário, etc. (Há que se avaliar
quais circunstâncias, claro; mas me refiro àquelas que estão mais
longe de um engajamento decidido em determinada forma de vida).
Mas,
ainda dentro dessa questão, surge o seguinte: suposto que possamos
distinguir graus de responsabilidade e suposto que, ao que parece,
qualquer processo em que nos metamos na vida não depende só de nós
(da nossa decisão individual, ao menos), haveria culpa do ponto de
vista existencial? Política e juridicamente poderíamos dizer que o
dono de uma empresa de ônibus e o prefeito do Rio têm culpa no
péssimo Estado do transporte público; mas na medida em que, a
rigor, seria de uma naturalização perversa atribuir a eles a causa
disso e, assim, a culpa, não seríamos levados a dizer que, do ponto
de vista (ético-)existencial mais radical, a culpa não existe? Não
estaria aí (e permita-me algo que pode soar como carolice e
pieguice), de um ponto de vista existencial e não religioso (ao
menos no sentido comum de religião), a porta aberta para a ideia que
vem através do Cristo, segundo a qual todos somos redimidos pela sua
morte, de que não devemos julgar (condenar, o que não significa que
não podemos emitir pareceres sobre os outros e julgá-los no campo
abstrato da política) e que o amor é, em última instância, o modo
pelo qual podemos nos relacionar com as pessoas "concretas"
em sua singularidade? Qual seria a relação entre este amor e aquele
que vc mencionou em sua primeira resposta ao Luciano? (...)
Setembro
de 2013
Para
o texto original e a discussão completa, cf:
https://www.facebook.com/notes/f%C3%A1bio-fran%C3%A7ois-fonseca/culpa-x-responsabilidade/10151579334912187