sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Do Cristo



Suposto que há algo que o acontecimento histórico, o pensamento e as narrativas que estão no princípio da era cristã ainda têm algo a nos dizer, um dos caminhos, se não o caminho para ouvi-lo talvez comece com a ideia de que o Cristo precisa ser compreendido como amor ao próximo. Nesse sentido, ser cristão significa ser tocado por esse amor que o Cristo é – esse é o sentido de toda conversão, que não é senão o salto para a Fé. Fé que não é senão isso: o amor ao próximo. Pois amor ao próximo não significa senão tomar o “semelhante” como o abismalmente incompreensível. A singularidade é o signo desse abismo ou, antes, sua manifestação. Esse incompreensível é aquilo em que se tem Fé: a ele só se pode ter amor – esta é a única maneira de compreendê-lo, isto é, guardar para ele o espaço que lhe é próprio na compreensão: a incompreensibilidade. O amor é a experiência aberta e ativa desse incompreensível.


Dizer que ele só é incompreensível como e no amor significa dizer algo próximo do que sentimos quando temos uma pessoa amada: por mais que enumeremos as qualidades que nos fazem amá-la, tais qualidades são por demais abstratas para dar conta da pessoa em que elas têm a sua concreção [1]. Não que esta pessoa seja um “núcleo duro”, uma “substância” que, estando para além de tais qualidade, em algum sentido as sustenta; tais caracterizações me soam por demais coisificantes e/ou abstratas para dizer esse “além” que a pessoa é e que ultrapassa as qualidades. Pois bem: esse “além” não é nada mais senão a existência mesma da pessoa – o que, uma vez mais, não é seu “ser simplesmente dado” no mundo, tampouco o mero conjunto das qualidades. Nada mais que as qualidades, todavia, o mistério da pessoa (das pessoas) está justo aí: nesse “nada” que ela tem a mais, nesse “nada demais” – é isso o que cada pessoa é, fundamentalmente.

E é isso que amamos em quem amamos: todas aquelas qualidades – e nada mais; mas, sobretudo, esse “nada (a) mais”. Testemunho disso me parecem ser tanto a impossibilidade última de oferecer as razões pelas quais amamos alguém – antes de intransitivo, o amor é um infinitivo sem sustentação: um abismo incompreensível – quanto o “nada” que, por vezes, faz com que deixemos de amar alguém – e todas as qualidades e defeitos, perdidos e achados no ser antes amado, aos quais procuramos atribuir o fim do amor, no fundo nada explicam: a causalidade não faz sentido aí.

A fé, ou amor a Deus, não é senão isso: a disposição que nos abre à incompreensibilidade que cada pessoa é, à sua maneira, ao seu jeito, enquanto singular. Por isso, ser cristão, a rigor, não é uma decisão, ao menos não no sentido de algo que está, em alguma medida, sob o controle da nossa vontade: trata-se da direção, do sentido de um esforço [2] para o despertar súbito dessa disposição que é a fé, ou o amor a Deus. A graça é o ter despertado tal disposição; no instante – raro – em que ela é despertada, dá-se, aí sim, a conversão: sou Cristão.

Existencialmente, a rigor, não há como distinguir entre passividade e atividade em uma ação: nem sou determinado de fora por uma cadeia causal ou o que quer que seja, nem eu como sujeito sou a causa da minha ação. A ação ou, ao menos, a ação autêntica é aquela em que quem vive é tão só a possibilidade em ação. “Ser tocado” ou “agir” ainda são imprecisos: quem existe é a sua possibilidade, é aquilo mesmo em que se realiza, é a ação mesma. Por isso, a decisão por querer ser cristão é, em algum sentido, já ser tocado pelo ser cristão ao mesmo tempo em que se tem a cada passo a absoluta incerteza de que se é o que se quer – se se está à medida da possibilidade em que um se envia.

Em outras palavras, o que há de certo (em todos os sentidos dessa palavra) e jamais o porquê de ele advir nesse sentido e se enviar nesse sentido: o esforço num sentido em última instância sem fundamento que não sua própria incompreensibilidade é isso quem somos, quem sou. A experiência disso como ateísmo autêntico é o absurdo; a mesma experiência – com uma diferença de nada – como confiança é a fé, o amor confiante ao que é incompreensível. Mas não haveria a paixão, o amor pelo absurdo num ateu como, digamos, Camus? A diferença dele para um crente não seria meramente nominal? O crente não daria uma máscara suportável, e mesmo amável, ao absurdo?

Como esforço sem sentido, enraizado na fé no abismo que é a outra face do sentido mesmo da vida, a fé é indistinta do desespero. Com o risco de parecer tomar um jogo de palavras por uma experiência, é possível dizer que o ateísmo é o desespero de toda fé: nada se espera dela, ela não tem sentido; já a fé só é autêntica fé enquanto fé desesperada: o amor sem sentido e que nada espera do incompreensível: confia no que ele pode dar; jamais desconfia dele – não condena o destino, embora possa julgá-lo. Todo julgamento de fé é absolvição certa: o emitir um parecer que jamais busca encerrar o julgado ao que dele aqui se mostra; isso é o abstrato nele, que justamente precisa ser dele isolado para que o julgado – a pessoa, Deus mesmo – se mostre como esse incompreensível para além. Daí vem o modo como o que se esforça por ser cristão precisa agir com o outro.

Mas antes de falar sobre isso, uma objeção: nada esperamos de Deus? Não é a coisa mais comum o fato de que quem crê pede a Ele muitas coisas em oração? Mas o pedido de fé é justo aquele que confia no incompreensível: jamais afirma-se merecedor e julgado bom quando recebe; jamais se julga esquecido e deixado de lado quando não recebe. Alguém poderia dizer: tampouco pode se dizer não merecedor quando não recebe. É justo, muito justo. Mas não se pode esquecer o quanto há, ou pode haver, de autopiedade e preguiça nessa atitude. De fato, se não é possível dar razões para que Deus não nos dê o que queremos e se não é possível por a culpa nele; e se o desejo permanece e segue nos parecendo justo, havemos de dirigir nossos esforços justamente ao âmbito sobre o qual temos algum – algum – “poder”: nossa vida. Nesse sentido, o erro, ou o desvio, sempre precisa se voltar sobre a nossa vida mesma, ainda que não nos pareça nosso: pois é só aí que podemos “interferir”, “agir”[3].

(Por sinal, a perversidade de certos protestantismos hoje em dia está justamente na tentativa de determinar, teria dito Descartes, “o que Deus pode e deve fazer”. Essa arrogância está precisamente no “Faça isso, então Deus vai te recompensar”. Nesse sentido, Paulo estava certo em dizer que a medida da salvação é a fé, não as obras; também estava correta a raiz do protestantismo, quando lembra que a salvação vem em última instância da (ou: de) graça)

Daí o esforço próprio ao cristão, ou ao que se envia na possibilidade de sê-lo: perdoar sempre, o "dar a outra face". Aí está a humildade. Bem entendido, isso não significa ser condescendente, não emitir pareceres sobre as coisas ou não lutar pelo justo; uma tal fé não implica em passividade [4]. Significa, isso sim, colocar esses pareceres no seu devido lugar: juízos abstratos sobre coisas e pessoas concretas (no sentido de Hegel). Julgo o abstrato nos outros e eventualmente, quando me parece o caso, o condeno; mas jamais me permito reduzir a singularidade desse outro a tal juízo e condenação. Isso se traduz na disposição, ou ao menos no esforço para ouvir no outro sempre a sua possível singularidade, o seu merecer ser ouvido. Em verdade, não importa o que outro faça ou o quanto eu queira fazer dele – em geral, maximamente meu semelhante nesses casos –, a singularidade sempre se salva das malhas da abstração. E o que salva é a sua Incompreensibilidade radical, isso é a raiz e o fundamento da pessoa: o divino nela, o que ela tem de bom: o bem mesmo (o Incompreensível). Contemplar o bem é justamente compreender o incompreensível em sua incompreensibilidade – isto é, guardar para ele, o bem, o seu lugar mais próprio.

O verdadeiro cristão talvez seja aquele cuja fé é desespero: o esforço confiante por nada, em um sentido sem fundamento - ou cujo fundamento é nenhum. E, nisso, a confiança justamente nesse incompreensível que está na base do sentido e o agir desde e por ele.

Ora, seria uma má compreensão entender essa fé como preguiça e fim de toda tentativa de compreensão, de explicação, de ação. Determinar desde o início tudo que lhe chega como incompreensível é testemunho de um panteísmo estranho, cético, preguiçoso, arrogante. Conceder o lugar próprio ao incompreensível é justamente o contrário: um esforço de compreensão que não cai nem na arrogância cética (ou pretende não cair) nem na arrogância de tudo determinar e, quiçá, dominar racionalmente. Ambas são faces da arrogância propriamente filosófica – a segunda, muitas vezes com uma cara eminentemente científica ou, ao menos, técnica.

O incompreensível jamais é o meramente incompreendido: e delimitar a fronteira entre um e outro é um, se não o esforço permanente do pensamento. 

(Rio, 02.02.12)

***

[1] A ideia de um amor como este me parece claramente expressa no "Madrigal Melancólico", de Manuel Bandeira, um poema que, por sinal, me parece poder ser incluído dentre as figuras da singularidade qualquer apresentadas por Agamben em A comunidade que vem:

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida. 

(11 de junho 1920)

[2] Mas não seria esse esforço a “prova” de que já se está (já se caiu...) na graça de Deus? Não é todo esforço no sentido da fé uma obra da graça?

[3] Por mais insuficiente que isso possa ser do ponto de vista ontológico, entenda-se por “vida” o todo das possibilidades que cada um de nós é, as quais sempre se dão em uma certa (determinada) relação de ser consigo mesmo, com os “outros” e com as “coisas”.

[4] Que, é bom que se lembre, precisa ser pensado junto com "Não vim trazer a paz, mas a espada." Para uma discussão da relação entre a posição do cristão e a ação (política): http://blogdoantifon.blogspot.it/2013/09/a-mascara-cara-o-rosto.html