Suposto que há algo que o acontecimento histórico, o pensamento e as narrativas que estão no princípio da era cristã ainda têm algo a nos dizer, um dos caminhos, se não o caminho para ouvi-lo talvez comece com a ideia de que o Cristo precisa ser compreendido como amor ao próximo. Nesse sentido, ser cristão significa ser tocado por esse
amor que o Cristo é – esse é o sentido de toda conversão, que
não é senão o salto para a Fé. Fé que não é senão isso: o
amor ao próximo. Pois amor ao próximo não significa senão tomar o
“semelhante” como o abismalmente incompreensível. A
singularidade é o signo desse abismo ou, antes, sua manifestação.
Esse incompreensível é aquilo em que se tem Fé: a ele só se pode
ter amor – esta é a única maneira de compreendê-lo, isto é,
guardar para ele o espaço que lhe é próprio na compreensão: a
incompreensibilidade. O amor é a experiência aberta e ativa desse
incompreensível.
Dizer que ele só é incompreensível
como e no amor significa dizer algo próximo do que sentimos quando
temos uma pessoa amada: por mais que enumeremos as qualidades que nos
fazem amá-la, tais qualidades são por demais abstratas para dar conta da pessoa em que elas têm a sua concreção [1]. Não que
esta pessoa seja um “núcleo duro”, uma “substância” que, estando para
além de tais qualidade, em algum sentido as sustenta; tais caracterizações me
soam por demais coisificantes e/ou abstratas para dizer esse “além”
que a pessoa é e que ultrapassa as qualidades. Pois bem: esse “além”
não é nada mais senão a existência mesma da pessoa – o que, uma
vez mais, não é seu “ser simplesmente dado” no mundo, tampouco
o mero conjunto das qualidades. Nada mais que as qualidades, todavia,
o mistério da pessoa (das pessoas) está justo aí: nesse “nada”
que ela tem a mais, nesse “nada demais” – é isso o que cada pessoa é, fundamentalmente.
E é isso que amamos em quem amamos: todas
aquelas qualidades – e nada mais; mas, sobretudo, esse “nada (a)
mais”. Testemunho disso me parecem ser tanto a impossibilidade
última de oferecer as razões pelas quais amamos alguém – antes
de intransitivo, o amor é um infinitivo sem sustentação: um
abismo incompreensível – quanto o “nada” que, por vezes, faz com que deixemos de amar alguém – e todas as qualidades e defeitos,
perdidos e achados no ser antes amado, aos quais procuramos atribuir
o fim do amor, no fundo nada explicam: a causalidade não faz sentido
aí.
A fé, ou amor a Deus, não é senão
isso: a disposição que nos abre à incompreensibilidade que cada
pessoa é, à sua maneira, ao seu jeito, enquanto singular. Por
isso, ser cristão, a rigor, não é uma decisão, ao menos não no sentido de algo
que está, em alguma medida, sob o controle da nossa vontade: trata-se da direção, do
sentido de um esforço [2] para o despertar súbito dessa disposição que é a fé, ou o amor a
Deus. A graça é o ter despertado tal disposição; no instante –
raro – em que ela é despertada, dá-se, aí sim, a conversão: sou
Cristão.
Existencialmente, a rigor, não há como
distinguir entre passividade e atividade em uma ação: nem sou
determinado de fora por uma cadeia causal ou o que quer que seja, nem
eu como sujeito sou a causa da minha ação. A ação ou, ao menos, a
ação autêntica é aquela em que quem vive é tão só a
possibilidade em ação. “Ser tocado” ou “agir” ainda são
imprecisos: quem existe é a sua possibilidade, é aquilo mesmo em
que se realiza, é a ação mesma. Por isso, a decisão por querer
ser cristão é, em algum sentido, já ser tocado pelo ser cristão ao mesmo tempo em que se tem a cada passo a absoluta
incerteza de que se é o que se quer – se se está à medida da
possibilidade em que um se envia.
Em outras palavras, o que há de certo
(em todos os sentidos dessa palavra) e jamais o porquê de ele advir
nesse sentido e se enviar nesse sentido: o esforço num sentido em
última instância sem fundamento que não sua própria
incompreensibilidade é isso quem somos, quem sou. A experiência
disso como ateísmo autêntico é o absurdo; a mesma experiência –
com uma diferença de nada – como confiança é a fé, o amor confiante ao que é incompreensível. Mas não haveria a paixão, o amor pelo
absurdo num ateu como, digamos, Camus? A diferença dele para um crente não
seria meramente nominal? O crente não daria uma máscara suportável,
e mesmo amável, ao absurdo?
Como esforço sem sentido, enraizado na
fé no abismo que é a outra face do sentido mesmo da vida, a fé é
indistinta do desespero. Com o risco de parecer tomar um jogo de
palavras por uma experiência, é possível dizer que o ateísmo é o
desespero de toda fé: nada se espera dela, ela não tem sentido; já
a fé só é autêntica fé enquanto fé desesperada: o amor sem
sentido e que nada espera do incompreensível: confia no que ele pode
dar; jamais desconfia dele – não condena o destino, embora possa
julgá-lo. Todo julgamento de fé é absolvição certa: o emitir um
parecer que jamais busca encerrar o julgado ao que dele aqui se
mostra; isso é o abstrato nele, que justamente precisa ser dele
isolado para que o julgado – a pessoa, Deus mesmo – se mostre
como esse incompreensível para além. Daí vem o modo como o que se
esforça por ser cristão precisa agir com o outro.
Mas antes de falar sobre isso, uma
objeção: nada esperamos de Deus? Não é a coisa mais comum o fato de que quem crê pede a Ele muitas coisas
em oração? Mas o
pedido de fé é justo aquele que confia no incompreensível: jamais
afirma-se merecedor e julgado bom quando recebe; jamais se julga
esquecido e deixado de lado quando não recebe. Alguém poderia
dizer: tampouco pode se dizer não merecedor quando não recebe. É
justo, muito justo. Mas não se pode esquecer o quanto há, ou pode
haver, de autopiedade e preguiça nessa atitude. De fato, se não é
possível dar razões para que Deus não nos dê o que queremos e se
não é possível por a culpa nele; e se o desejo permanece e segue
nos parecendo justo, havemos de dirigir nossos esforços justamente
ao âmbito sobre o qual temos algum – algum – “poder”:
nossa vida. Nesse sentido, o erro, ou o desvio, sempre precisa se
voltar sobre a nossa vida mesma, ainda que não nos pareça nosso:
pois é só aí que podemos “interferir”, “agir”[3].
(Por sinal, a perversidade de certos protestantismos hoje em dia está justamente na tentativa de determinar, teria dito Descartes, “o que Deus pode e deve fazer”. Essa arrogância está precisamente no “Faça isso, então Deus vai te recompensar”. Nesse sentido, Paulo estava certo em dizer que a medida da salvação é a fé, não as obras; também estava correta a raiz do protestantismo, quando lembra que a salvação vem em última instância da (ou: de) graça)
Daí o esforço próprio ao cristão, ou
ao que se envia na possibilidade de sê-lo: perdoar sempre, o "dar a outra face". Aí está a humildade. Bem entendido, isso não
significa ser condescendente, não emitir pareceres sobre as coisas ou não lutar pelo justo; uma tal fé não implica em passividade [4]. Significa, isso sim, colocar
esses pareceres no seu devido lugar: juízos abstratos sobre coisas e
pessoas concretas (no sentido de Hegel). Julgo o abstrato nos outros
e eventualmente, quando me parece o caso, o condeno; mas jamais me permito reduzir a
singularidade desse outro a tal juízo e condenação. Isso se traduz
na disposição, ou ao menos no esforço para ouvir no outro sempre a
sua possível singularidade, o seu merecer ser ouvido. Em verdade,
não importa o que outro faça ou o quanto eu queira fazer dele –
em geral, maximamente meu
semelhante nesses casos –,
a singularidade sempre se salva das malhas da abstração. E o que
salva é a sua Incompreensibilidade radical, isso é a raiz e o
fundamento da pessoa: o divino nela, o que ela tem de bom: o bem
mesmo (o Incompreensível). Contemplar o bem é justamente
compreender o incompreensível em sua incompreensibilidade – isto
é, guardar para ele, o bem, o seu lugar mais próprio.
O verdadeiro cristão talvez seja aquele cuja fé
é desespero: o esforço confiante por nada, em um sentido sem
fundamento - ou cujo fundamento é nenhum.
E, nisso, a confiança justamente nesse incompreensível que está na
base do sentido e o agir desde e por ele.
Ora, seria uma má compreensão entender
essa fé como preguiça e fim de toda tentativa de compreensão, de
explicação, de ação. Determinar
desde o início tudo que lhe chega como incompreensível é
testemunho de um panteísmo estranho, cético, preguiçoso,
arrogante. Conceder o lugar próprio ao incompreensível é
justamente o contrário: um esforço de compreensão que não cai nem
na arrogância cética (ou pretende não cair) nem na arrogância de
tudo determinar e, quiçá, dominar racionalmente. Ambas são faces da
arrogância propriamente filosófica – a segunda, muitas vezes com uma cara eminentemente científica ou, ao menos, técnica.
O incompreensível jamais é o meramente
incompreendido: e delimitar a fronteira entre um e outro é um, se não o esforço permanente do pensamento.
(Rio, 02.02.12)
***
[1] A ideia de um amor como este me parece claramente expressa no "Madrigal Melancólico", de Manuel Bandeira, um poema que, por sinal, me parece poder ser incluído dentre as figuras da singularidade qualquer apresentadas por Agamben em A comunidade que vem:
O que
eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A
beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que
eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que
eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.
O que
eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.
O que
eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
(11 de junho 1920)
[2] Mas não seria esse esforço a “prova” de que já se está (já
se caiu...) na graça de Deus? Não é todo esforço no sentido da
fé uma obra da graça?
[3] Por mais insuficiente que isso possa ser do ponto de vista ontológico, entenda-se por “vida” o todo das possibilidades que cada um de nós é, as quais sempre se dão em uma certa (determinada) relação de ser consigo mesmo, com os “outros” e com as “coisas”.
[4] Que, é bom que se lembre, precisa ser pensado junto com "Não vim trazer a paz, mas a espada." Para uma discussão da relação entre a posição do cristão e a ação (política): http://blogdoantifon.blogspot.it/2013/09/a-mascara-cara-o-rosto.html