quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A máscara, a cara, o rosto

A máscara, a cara, o rosto


"A metade vale mais que o todo [o tudo]"
(Hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 40;
 relembrado por Platão em República, 466c) 


Publiquei, há um tempo, o seguinte texto na minha página no facebook:

Se levarmos a sério, ao pé da letra mesmo, o nome (sic) 'Anonymous' e se considerarmos os últimos e esquizofrênicos episódios em torno dessa coisa (um anônimo que, querendo se manter anônimo, diz que outro anônimo não é ele), me parece que fica clara uma coisa: a rigor, não há como fazer política sem ter uma cara (o que, quiçá, não precisa necessariamente significar a rigidez de uma identidade substancial, mas um incessante 'ou isso ou aquilo'). Nesse sentido, ou bem se assume essa cara autonomamente, ou bem ela vai acabar aparecendo em meio à luta política, quando se for compelido a tomar partido - e, se não vejo mal, na política sempre é preciso fazê-lo. Ou é isso, ou a máscara fica mesmo vazia, e nela se pode encaixar absolutamente qualquer coisa: e qualquer poder contestatório que ela poderia ter se desmancha no ar. Se é assim, a rigor em política jamais existe 'Anonymous': no máximo 'Pseudonymous' ou 'Heteronymous'.”

O Brasil estava em meio às “jornadas de junho” e um vídeo intitulado “As Cinco Causas” havia sido divulgado em nome (!) do Anonymous. A pretensão do vídeo era responder às críticas de que as manifestações não tinham uma pauta clara. Para responder a essa crítica, o anônimo do vídeo propunha cinco pontos “sem polêmicas de cunho religioso ou ideológico, sem bandeiras partidárias ou subjetividade” (sic!), que seriam “causas de cunho moral que são unanimemente aceitas” (sic!!). O objetivo declarado da proposta era, portanto, pautar as manifestações, dar-lhe uma identidade – se quisermos: uma cara. A alegação era que, sem isso, o movimento poderia perder força. Pelo teor coxinha (ou, como prefiro, bunda-mole [1]) da apresentação do material e das causas propostas, ou ao menos de parte destas, o vídeo teve ampla divulgação.

Críticas sobretudo à esquerda não tardaram a aparecer, assim como não tardou a aparecer uma resposta dos que seriam os “verdadeiros” Anonymous (ou simplesmente outros Anonymous), dizendo que aquele vídeo “não os representava”. Deixando de lado o fato de o vídeo ter vindo ao encontro da tentativa da grande mídia de pautar as manifestações, depois do fracasso da estratégia (jamais abandonada, como mostram os últimos acontecimentos) de simplesmente criminalizá-las; e deixando de lado a tentativa legítima de pensar o que as manifestações querem (sobre o que também dei um pitaco bem simples na época), interessava-me no comentário que abre esse texto pensar a seguinte questão: em que medida se pode fazer política permanecendo sem tomar um partido, usando uma máscara para não dar a cara a tapa?

A minha posição permanece a mesma: não é possível. Isso porque fazer política implica em pensar um direcionamento, um sentido que se quer dar ao todo da comunidade em que se faz política e, com isso, lidar com os outros sentidos que múltiplas partes da comunidade procuram dar a esta, bem como com as complexas relações de poder (de violência e de diálogo) ligadas a essa lida. E por mais que se declare uma coisa para "mascarar" que se quer outra, o modo como se age nos âmbitos públicos de decisão da comunidade (ao menos se, ou sobretudo se, esta comunidade procurar se constituir de fato como democrática) ou então o caminho mesmo que a comunidade toma vão mostrar, mais cedo ou mais tarde, que compreensão para o todo o "mascarado" em questão quer fazer vingar. Isso é verdade sobretudo quando há uma intensa e constante participação de todos (ou da maior parte) (d)aqueles que compõem a comunidade em questão. Ou é isso ou, como me parece ser muitas vezes o caso de máscaras ou de estratégias/estéticas como a do Anonymous, a máscara serve para absolutamente qualquer um tomar parte da política como quiser. Nesses casos, ela tende a tornar-se uma máscara vazia de força política, na medida em que, por si, não aponta nenhum sentido para o todo da comunidade, sendo apenas a expressão insossa de um ninguém sem desejo (próprio).

Pois bem, o corolário dessas considerações parece ser: em política, não há máscaras. Há caras que, de um jeito ou de outro, se põe à nu no palco das decisões públicas. Mas há máscaras e máscaras: aqui é preciso fazer uma distinção, que talvez possa ajudar a pensar o mais recente capítulo da tentativa de criminalização de manifestações e manifestantes: a proibição do uso de máscaras no estado do Rio de Janeiro.

Ora, a interpretação feita até aqui parece supor, em parte, que “máscara” é algo que simplesmente serve para esconder uma “cara” por trás. Ela parece presa a uma distinção muito comum em qualquer metafísica (de botequim) entre uma aparência ilusória, falsa e/ou enganadora (a máscara) e um ser verdadeiro que por vezes se esconde nessa aparência (a cara). Dizemos que “parece supor em parte” porque o ter uma cara, no caso do Anonymous, não implica em retirar a máscara, mas sim em tomar partido, em dar uma cara à máscara – fazer da máscara (um) alguém.

É aqui que se pode estabelecer um corte no modelo que simplesmente opõe ser e aparência: máscara e cara seriam, em verdade, dois nomes para o mesmo. Os gregos, por sinal, já compreendiam máscara e cara (e também, sintomaticamente, personagem e pessoa) sob uma mesma palavra: prósopon. Mais, ainda: o significado de "personagem" -- isto é, de apresentar-se publicamente diante do outro nos acontecimentos da pólis (autodenominada democrática) que eram os espetáculos teatrais -- é primário em relação ao significado de “pessoa” [2].


Foto de Andrew Matusik, Magritte Fashion, para o editorial "Sir Realist". (http://trendland.com/magritte-fashion-editorial/)

Para nós, isso indica o seguinte: é através das várias máscaras, ou caras, assumidas de maneira mais ou menos autônoma na vida comum, que vai se delimitando, em relação ao todo das máscaras e caras possíveis à vida, a parte que me (ou nos cabe). Esse singular tomar parte no todo da vida, que acontece de um jeito ou de outro a cada um de nós, poderia, com justiça, ser chamado de rosto - na medida em que "rosto" pode ser o "símbolo" (palavra que em grego tem justo o sentido de “encontrar”, “vir para junto”) da história de uma vida. Ora, desde que entramos na vida, somos levados a lidar com as caras ou máscaras que nos chegam dos outros, em meio às quais nos decidimos, de modo mais ou menos autônomo e explícito: dentre muitas outras coisas, ganhamos um nome próprio, um signo de filiação (ou falta de); nos engajamos nessa ou naquela profissão dentre as que o mundo oferece; tomamos partido por essa ou aquela posição política; recebemos do Estado uma carteira de identidade e um CPF, com números e a foto de um “rosto” que pretensamente identificariam quem realmente somos.

Por sinal, estas últimas máscaras, as que nos vêm do Estado estão dentre as que mais podem gerar ilusões e, antes, injustiças, do ponto de vista de uma narrativa existencial. Pois o “rosto” e os números abstratos que constam nos nossos documentos de identificação não são mais que um momento abstrato, e reificado, de uma história singular – eis uma injustiça; e não raro estes e aquele contribuem para fazer com que aquela identidade reificada se faça passar por esta história – eis uma ilusão. Sinal disso é o desaparecimento de rostos por anos em meio aos processos judiciários abstratos e impessoais. Sinal mais claro são os rostos que perdem a vida por serem subsumidos pelas forças do Estado à máscara abstrata de “meliantes”. Sinal mais claro ainda são os rostos que permanecem anônimos, às margens dos serviços e direitos que o Estado deveria garantir, rostos que este só se interessa em identificar quando causam algum “incômodo” à ordem estabelecida. E os exemplos, nesse último caso, são inúmeros: ou porque suas moradias atrapalham a expansão do poder econômico, ou porque sua presença atrapalha o mercado do turismo, ou porque, enfim, eles decidiram reagir e reivindicar que a política seja o lugar para garantir e expandir direitos, promover a justiça social e garantir que cada um possa realizar-se em sua singularidade. O anonimato e suas máscaras convêm ao Estado e aos interesses econômicos que o governam apenas quando servem aos seus objetivos de exclusão, exploração e domínio, e não quando são usados como proteção e arma por aqueles que lutam pelo direito de ter um rosto.

Ora, sobre esse pano de fundo, a decisão da Alerj de proibir máscaras nas manifestações, ainda mais se considerada desde o contexto mais geral da progressiva criminalização dos movimentos sociais e das manifestações por parte do Estado e da mídia corporativa, opera exatamente a redução que tentei esboçar acima. Trata-se de reduzir as possibilidades de manifestação (política) da vida (em) comum; de reificar e, com isso, procurar dominar as muitas caras, máscaras e, assim, os muitos rostos que podem ter lugar na vida, subsumindo essa multiplicidade a uma identidade pré-determinada pelo próprio Estado. Isso é um golpe não só na liberdade “de expressão”, mas, ao menos “simbolicamente”, à liberdade de constituição diversa e singular da vida, sobretudo na medida em que esta se dá como um tomar parte e partido nos rumos da vida (em) comum – na medida em que ela se dá como política, pois.

À máscara excludente do “meliante” e à máscara redutora do “vandalismo”, a mídia corporativa e o Estado acrescentam agora a máscara reificante da cara sem máscaras, da identidade pré-determinada. Talvez esta última seja a mais perversa: tanto por conta da compreensão comum de que este é, “na verdade”, o “nosso rosto”, e que é assim que quem quer se manifestar dá a cara a tapa de fato – quanto pelo fato de que a proibição foi aprovada sob a máscara da democracia, por representantes eleitos por todos.

Nesse sentido, um dos trabalhos agora (e sempre) é justamente desmascarar os interesses que se apresentam como “de todos”, mostrando-lhe a cara (ou a máscara) que cabe "de verdade" a cada vez a cada um que toma parte no jogo político. Para isso, como temos visto (mais eloquentemente) nos últimos tempos, nada melhor que a força das ruas.

Foi por conta desta força que o prefeito e o governador do Rio de Janeiro foram levados a reconhecer, respectivamente, a face nazista de sua política de remoções e a ausência de diálogo que caracteriza seu governo. Foi por conta desta força que a mídia corporativista foi constrangida a mostrar mais claramente a sua cara, ao trocar seguidamente de máscaras no modo como (en)cobria as manifestações e ao ser levada a dar a cara a tapa, em uma confissão histórica, mas certamente ambígua e contestável, de seu apoio à ditadura militar no Brasil.

É pela força das ruas, enfim, que me parece poder-se cumprir a tarefa de fazer vir ao palco, em sua máscara "autêntica", os atores do teatro político do presente no Brasil. Mais, ainda: é a força das ruas que torna possível o trabalho pela ideia de criar a vida (em) comum como um cenário no qual, através de uma democracia radicalmente horizontal, ninguém seja constrangido pelo poder a assumir máscaras que desfigurem o seu rosto próprio. Um cenário no qual cada um tenha espaço para viver com as máscaras e caras com as quais possa, livremente, criar e recriar para si um rosto singular.


***


[1] As mobilizações dos últimos meses, na medida em que populares e com pautas progressistas, merecem todo o apoio. Mas, como se não bastassem as pautas (e atitudes) de direita, a violência do Estado e o “vandalismo” da mídia, todo esse processo teve ainda um efeito negativo: o rebaixamento do nobre salgado que atende pelo nome de "coxinha" à designação de certo tipo de manifestante indigesto ou, no mínimo, insípido (mas de modo algum inofensivo). A esse respeito, eis aqui minha reivindicação: substituamos essa designação por alguma mais ao sabor das atitudes dessas pessoas. "Bunda-mole" talvez seja uma opção, com a vantagem que já teríamos até um substantivo abstrato para designar o "movimento" ou "doutrina" representado(a) por tais pessoas: o "bundamolismo".

[2] Ver: CHANTRAINE, Pierre. Dcitionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Histoire des Mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1900. Verbete “prósopon” (p. 959) Enquanto escrevia esse texto, me deparei, na comunidade da Universidade Nômade no Facebook, com uma postagem bastante interessante de Bruno Cava Rodrigues, que, por intimamente relacionado com o tema do meu texto (que, em certo sentido, é um possível desenvolvimento do que ele diz na postagem), faço questão de reproduzir na íntegra aqui: “Em grego antigo, prósopon é simultaneamente "máscara" (usada nos teatros públicos) e "rosto". Mas também pode ser traduzido simplesmente por "pessoa", no sentido de existência social na cidade. "Prósopon", por sinal, foi traduzida para o latim como "persona". A prósopon exprime o estado emocional em uma determinada situação. Não era tanto uma expressão da alma do indivíduo, mas um signo de sua existência implicada num ato coletivo, na figura do coro. Na teologia cristã dos primeiros séculos, Jesus se torna a unidade "prosópica" das naturezas divina e humana. Isto é, Deus e Homem são um só enquanto face: a imagem e semelhança de que fala a bíblia. Disto, seguem sucessivas manobras cristológicas cujo pano de fundo é a interiorização da máscara, individualizando a consciência que pensa e sente (e se culpa, e tem de confessar e expiar). A obra de Agostinho testemunha a respeito. A face humana passa a ser considerada manifestação de uma "verdade interior", do genuíno e autêntico estado de espírito de cada um. Essa hipostasiação da prósopon que só existia enquanto socialidade atinge o máximo no romance burguês do século 19, centrado na inadequação angustiada do indivíduo diante da sociedade. Mas também dessa manobra, já na idade média, disparam os inquéritos policiais, dedicados a sondar o interior de cada um, atrás de algo até então inédito, um novo conceito de verdade (Foucault). É o começo da história de um longo cinismo, que o estado vai aproveitar para fixar a máscara de cada um, segundo um poder catalogador. Registrada nos documentos oficiais, a substancialização da prósopon estabelece ao mesmo tempo a identidade individual (você e seu rosto são um só) e coletiva (você tem RG, é cidadão). Não admira a obsessão em evitar o teatro das ruas, em criminalizar o uso livre das máscaras. Nessa tecnologia de poder, a verdade não pode libertar-se dos aparelhos de estado, de sua dor característica, e seu inquérito infinito. Tentam impedir o retorno de uma realidade já ancestral: nossos rostos, afinal, não exprimem nada de "fundo". São máscaras, pele social, superfície de relações, e não têm nada mais rico e desejante (e perigoso) do que isso.”

domingo, 1 de setembro de 2013

Para uma ontologia (política) da greve

Foto de rafaelrvsilva (http://instagram.com/p/dkgzlzCcxk/)

Para uma ontologia (política) da greve


Sócrates: (…) Os jardins de letras, ao que parece, ele os plantará por diversão/de brincadeira (paidiâs) e escreverá, quando escrever, para acumular um tesouro de lembranças para si mesmo, quando ele se tornar esquecido na velhice, e para outros que seguem o mesmo caminho, e terá prazer em vê-los brotando em folhas novas. Enquanto outros se ocupam de outras diversões, refrescando-se com banquetes e coisas como essas, ele passará o tempo, como eu disse, em tais prazeres.
Fedro: Você fala belissimamente de um passatempo (paidián) que não é fraco não – um passatempo de quem é capaz de se divertir (paízein) com palavras (en lógois) contando histórias (mythologoûnta) sobre a justiça e outras coisas semelhantes.”
(Platão, Fedro, 276d-e, tradução (de tempo) livre.)


A foto acima me pareceu um bom pretexto para lançar uma ontologia (política) da greve ou, antes, a partir da greve (no Rio de Janeiro). O que segue é quando muito um esboço.

Em filosofia, o termo "ontologia" é compreendido, em linhas gerais, como a "ciência do ser (em grego: "ón", "óntos") ", o "estudo do ser", "o discurso acerca do ser". Ora, o cartaz que está na foto cita a noção de ser ("o ser é único"); daí um primeiro nível de leitura da brincadeira (?).

Mas tem mais: ao dizer "o ser é único", o cartaz pode chamar a atenção de muitos ouvidos acostumados à tradição filosófica, na medida em que pode remeter à tese que não poucos fazem remontar a Parmênides: a tese de que "o ser é um". Esta, por sua vez, pode ser entendida como a afirmação de que, "no fundo", todas as coisas só parecem ser diferentes e múltiplas, mas "no fundo" são uma só e idêntica (coisa?): o ser. Assim isolada, a frase parece rememorar, portanto, uma questão - se não
a questão - fundamental da ontologia: a questão da relação entre um e múltiplo. É o que parece se confirmar quando se olha para a primeira frase do cartaz, para a palavra "plural" (o que lembra, ao menos àqueles ouvidos calejados, o "múltiplo").

"Parece", porque se lemos a frase toda, ela diz: "A escola é plural, pois o ser é único.". Tal leitura pode pôr em colapso toda a lembrança (apressada) do parágrafo anterior. Isso porque, no contexto da frase toda, "único" parece significar não que "tudo é um" (que a aparente multiplicidade e diferença entre as coisas "esconde", na verdade, uma unidade, uma identidade real), mas sim que cada ser, em especial cada pessoa, é único, é singular, não pode ser reduzida a outra coisa, é "pessoal e intransferível" (se me é permitido o pleonasmo de "pessoa pessoal e intransferível"). Isso fica mais explícito se compreendermos por "contexto da frase toda" não só a própria frase, mas a sentença que vem depois dela ("Liberdade pedagógica!"), bem como o fato de que o cartaz como um todo pertence a um contexto singular: uma greve de professores.

O que está sendo reivindicado aí é a liberdade, isto é, a possibilidade de decisão e escolha por parte dos professores sobre qual caminho seguir quando se trata de "promover" ou, antes, propiciar um âmbito adequado para que se dê o aprendizado (no qual aluno e professor têm funções diversas, mas do qual ambos participam). E como essa reivindicação está sendo feita diante do Estado; como, além disso, ela envolve relações de poder diversas; e como, mais fundamental, ela põe em questão o sentido mesmo no qual e para o qual está caminhando uma comunidade como um todo, tal reivindicação é eminentemente política. 

“Curiosamente” – só que não – tal liberdade é negada justamente por uma gestão de cunho neoliberal, na qual o máximo aproveitamento dos recursos financeiros e avaliações duvidosas, ambas responsáveis pela redução de pessoas a números abstratos, impessoais e “objetivos”, tomam à frente do processo de aprendizagem e das situações singulares em que ele pode se dar em nome de uma produção em série de índices que rendem financiamento federal e, colateralmente, mão de obra economicamente barata e politicamente dócil para o mercado. Nesse sentido, a operação ("onto-política") das secretarias de educação do Estado e do município do Rio, na medida em que esta comungam de um mesmo objeto, guarda semelhanças à redução do diferente ou, antes, do singular, à identidade cuja paternidade costuma ser atribuída a Parmênides (se com justiça ou não, esta não é a ocasião para julgá-lo). Pois em ambos a multiplicidade e sua diversidade (no caso da aprendizagem, as singularidades pessoais e intransferíveis) são meras aparências que escondem a identidade (do processo que) real(mente conta) - a saber, os índices abstratos nos quais só cabe uma diferença quantitativa traduzível em números. 

Por outra: o processo "real", concreto e singular da aprendizagem é posto como mera função, mero meio, mero adorno em que o que "realmente" importa são os índices abstratos (de aprovação, de "dividendos educacionais"). Nisso, aquele processo tende a ser esvaziado de sua "realidade", isto é: tende não só a realmente ser sem valor (pois funciona em outra ordem de valores que não os que podem ser comprados e vendidos), mas também a perder as condições (materiais e humanas, "reais") para a sua realização. E isso se dá porque o poder daquilo que, na verdade (isto é, do ponto de vista da aprendizagem mesma), não (precisa) importa(r) se impõe como o que realmente conta, uma vez que, diz-se, expressa "objetivamente" que um processo educacional "realmente" se deu (por meio de notas, estatísticas, etc.). Não são em condições como essas que professores se queixam que "fingem que ensinam" e que os alunos "fingem que aprendem" - ou seja, que a aprendizagem se torna mera aparência? Não foi contra essa lógica e pela "questão pedagógica" que (a meu ver acertadamente) o município e o Estado decidiram manter a greve? 

(Bem entendido, tudo isso não implica que estatísticas e notas não possam ter um papel no processo educacional como um todo (com as instituições e os problemas políticos que envolve); apenas pontuo que a aprendizagem e suas peculiaridades são o que realmente importa, e aqueles números contam, ou podem contar, enquanto estão a serviço dela)

Ora, a reivindicação política de liberdade pedagógica está fundada em uma afirmação acerca do ser das coisas, acerca de como as coisas são (ou precisam ser (compreendidas) em uma comunidade que se quer democrática...); daí a ideia de pensar uma ontologia (um discurso (lógos) sobre o ser), mas uma ontologia política. Nesse sentido, tal ontologia envolveria a discussão sobre como uma comunidade (um bairro, uma escola, uma cidade, um país, o mundo mesmo) compreende de fato, isto é, nas suas atitudes, procedimentos e instituições, o ser das coisas e das pessoas - e uma discussão sobre como ela "quer" (ou "precisa") compreendê-los de acordo com o destino, o caminho que esta comunidade em questão decide tomar.

Aliás, por via da política, a questão do todo (que estava de uma certa maneira no "tudo é um" implicitamente contido no "ser é um", convém lembrar) retorna, mas não como unidade e identidade que torna todas as diferenças mera aparência, mas como a ideia de que o que há de comum (poderíamos dizer, para sublinhar a unidade aí: com-Um) entre todos nós (pessoas, ao menos) é algo que escapa a toda identidade e diferença fixas: a singularidade. Criar o espaço para que isto se dê, este me parece ser, aliás, o "real" sentido da ideia de comunismo...



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Daí é tocar para frente (ou para trás, se for o caso), quiçá com a companhia dos caras que contemporaneamente tentam desenvolver essa questão do Uno-múltiplo, do idêntico-diferente, do mesmo-outro, relacionando-o com a política: o Badiou, o Zizek e companhia.


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Como se sabe, mas talvez não convenha esquecer, em grego "tempo livre" se diz skholé.