Abaixo e à esquerda (1).
Nas
ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo.
Correlacionar as jornadas de junho-outubro de 2013 com os resultados das eleições de 2014 não é, como era de se esperar a essa altura, tocar em um tema novo. Quase todas
as análises das eleições que foram feitas até agora, e em
especial aquelas que se colocam ou pretendem colocar-se do lado
esquerdo do espectro político, levaram em consideração as
manifestações do ano passado. O interesse da série de notas que esse texto (espero, apenas) inaugura é contribuir para organizar e pensar o cenário político que se delineia nesse arco de um ano de lutas. Não há nenhuma pretensão de ser exaustivo; e é preciso ter sempre no horizonte que pensar é também, para dizer o mínimo, compreender o lugar do incompreensível e do impensável. Da direita para a esquerda, parece-me
que se pode dizer mais ou menos o que se segue.
Houve a direita fascista, que veio
às ruas nas maiores manifestações (mas, é preciso sempre
lembrá-lo, não as monopolizou), e talvez tenha encontrado algum eco
na eleição de quadros como Bolsonaro (RJ) e Heinze (RS), bem como
em discursos como de Levy Fidelix. Digo “talvez” porque o termo
“fascismo” aqui comporta (ao menos) a seguinte característica: a
“escolha” de um inimigo como causa fantasmática de um problema,
em contraposição ao qual, com a finalidade de aniquilar fisicamente
tal inimigo, se propaga uma unidade do corpo social que se sobrepõe
às e se esquece das fissuras socioeconômicas, das desigualdades da
comunidade em questão.
Nas ruas, inimigos eram os políticos
e partidos políticos, ditos (quase que essencialmente) corruptos e a
nação brasileira deveria se unir para eliminá-los (se fisicamente,
isso nem sempre era claro). Nas urnas, inimigos eram não só estes,
mas também (e sobretudo) aqueles contra os quais a família
(heteronormativa e patriarcal) brasileira deveria se unir: gays,
lésbicas, transexuais, transgêneros (para quem se prega, se não a
morte física, o internamento para “tratamento psicológico”,
além do inferno durante e depois da vida, claro), assim como
defensores do aborto em geral (que, até onde vi, não estão na
lista dos a serem aniquilados, mas vai saber...) e, não raro,
indígenas, quilombolas e “bandidos” (corporificado no velho
lema, que veio à rua quase literalmente nos justiçamentos e segue
subindo as favelas com bem mais literalidade (e letalidade), cujo
alvo preferencial, se não exclusivo, são negros pobres: “bandido
bom é bandido morto”).
Ora, como no primeiro caso os
políticos são “parte do problema”, é possível imaginar que
parte dos votos brancos, nulos e das abstenções (somadas, cerca de
27% do eleitorado) possa estar ligada aos fascistas da rua. Mas como,
por outro lado, esse problema pode ser compreendido como um problema
dos políticos e dos partidos políticos em questão, mas não do
sistema político (e muito menos da democracia representativa)
enquanto tal, é possível supor que esse eleitorado possa ter visto
na eleição de políticos conservadores com laivos (e não poucos)
de fascismo.
Todavia, não poucos preferem
atribuir a eleição da maior bancada conservadora em 50 anos a um
grupo mais amplo e mais difuso, que talvez constituía a maioria nas
maiores manifestações de 2013. Mais ou menos identificados pela
classificação antropológica precisa “coxinhas”, tal grupo
seria formado por pessoas “menos acostumadas” com a lida política
cotidiana, que se limitavam a comentar assuntos desse gênero entre
amigxs e/ou nas redes sociais. O horizonte dessas intervenções é
em geral o do senso comum mais ou menos difundido e reforçado, se
não mesmo em parte criado, pelo oligopólio midiático. Tal senso
comum se compõe de uma rejeição à política que vai do vago
desinteresse, passando e confundindo-se com o papo de que “política
não se discute” (“fundado” na infame analogia entre política,
futebol e religião) até (confundir-se com) a raiva em relação aos
políticos. Nisso, a referida rejeição costuma se valer, de maneira
mais ou menos inconsciente, de (falsas, mas compreensíveis)
indistinções entre política e políticos, entre política e
eleição, entre política e Estado. Não raro, todo esse quadro é
temperado com um apelo ao nacionalismo (da pátria de chuteiras, do
samba, do futebol, da mulata, do povo alegre), em nome do qual todos
deveriam se unir contra a corrupção (culpa exclusiva dos políticos
corruptos) e por um Brasil Melhor, com mais saúde e educação
(pautas que, assim em abstrato, são mesmo consensuais). Do ponto de
vista socioeconômico, tais “coxinhas” estariam na “classe
média”, sobretudo a “nova”, incluída no consumo nos anos do
governo do PT. Do ponto de vista etário, seriam em sua grande
maioria jovens.
Pois bem: é esse caldo ou, antes,
esse salgado, que teria formado (predominantemente) as manifestações.
Apesar de incluídos nos últimos anos, ou justamente por isso (isto
é, pela consciência de que poderiam/deveriam querer mais), os
coxinhas queriam mais e foram para as ruas com inúmeras pautas,
lutar “contra tudo que está aí”. Repressão à parte, a falta
de articulação política consistente, contudo, teria feito com que
as manifestações de 2014, durante a Copa, não tivessem o mesmo
fôlego. Pela mesma razão, ou por uma semelhante, o despertar do
gigante teria resultado no sono das urnas, com o pesadelo da eleição
de uma grande bancada conservadora, sobretudo em termos de direitos
das (ditas) minorias (sexuais, de gênero, raciais), mas também no
que diz respeito ao fundamentalismo religioso (evangélico e
católico), à defesa aberta da ditadura, de medidas de segurança
cada vez mais punitivistas e militarizantes, da volta e/ou ampliação
de uma política econômica neoliberal, enfim, de um Estado inchado
do ponto de vista da repressão e da criminalização dos movimentos
sociais, das (ditas) minorias e da pobreza, ao mesmo tempo que enxuto
no que se refere aos direitos, aos investimentos em serviços
públicos, à intervenção no mercado.
Os principais responsáveis por esse
quadro seriam, pois, os coxinhas. Eles são o espantalho, o
sujeito-suposto-fazer-e-falar-merda dos vários espectros do político
– em especial o (autoproclamado) de esquerda.
Acontece que a conta aqui, a meu ver
fecha rápido demais. A deriva à direita do parlamento brasileiro
não se relacionaria com a reação ao avanço, mesmo aos trancos e
barrancos, da luta por direitos do movimento negro, LGBT, feminista,
de favelas e periferias. Muito menos teria a ver com os erros da
esquerda – em especial com as concessões e ações da esquerda no
poder, ações e concessões que não raro põem em dúvida o caráter
mesmo de esquerda desse poder (suposto que há poder ou, antes,
governo de esquerda). A autocrítica não existe, ou é rara, ou
sempre vem acompanhada de um “mas ainda assim é menos pior
que...”.
Na obra Em defesa das
causas perdidas, Zizek lembra
que devemos tomar cuidado para não fazer o jogo do inimigo a ponto
de acabarmos defendendo apenas uma cópia negativa do que ele quer –
quando a tarefa é modificar o horizonte mesmo de coordenadas (da
escolha, do desejo). Não é isso que acontece quando um Partido dos
Trabalhadores, suposto que consiga se justificar no poder (e não
meramente pelo poder), só possa fazê-lo na medida em que
conserva(ria) certas conquistas diante de um governo pior – e não
por propor novos patamares de avanço, quando as ruas abrem/abriram o
horizonte para isso?
No lugar de questões desse gênero, da rara autocrítica, a
“altercrítica” está por toda parte, com ou sem o argumento –
ou desculpa – de que o momento tático não é esse, o da decisão
eleitoral – “argumento”, para os setores que se dispuseram a
essa autocrítica em outros momentos; “desculpa”, se não para a
maioria, pelo menos para a ala mais poderosa da esquerda (?) no
governo, que por palavras e (sobretudo) atos, continua crendo estar
no rumo certo. Coxinha, claro, são os outros.
Numa próxima nota, pretendo pensar/mover a coisa mais à esquerda –
o que significa, se o nome “esquerda” ainda pode nos servir de
alguma coisa, movê-lo mais para baixo.
Publicado originalmente em: http://ideiaeideologia.com/nota11-10062014-rj-i/