quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Abaixo e à esquerda (1). Nas ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo.

Abaixo e à esquerda (1)
Nas ruas e nas urnas, do fascismo ao coxismo. 

Correlacionar as jornadas de junho-outubro de 2013 com os resultados das eleições de 2014 não é, como era de se esperar a essa altura, tocar em um tema novo. Quase todas as análises das eleições que foram feitas até agora, e em especial aquelas que se colocam ou pretendem colocar-se do lado esquerdo do espectro político, levaram em consideração as manifestações do ano passado. O interesse da série de notas que esse texto (espero, apenas) inaugura é contribuir para organizar e pensar o cenário político que se delineia nesse arco de um ano de lutas. Não há nenhuma pretensão de ser exaustivo; e é preciso ter sempre no horizonte que pensar é também, para dizer o mínimo, compreender o lugar do incompreensível e do impensável. Da direita para a esquerda, parece-me que se pode dizer mais ou menos o que se segue.

Houve a direita fascista, que veio às ruas nas maiores manifestações (mas, é preciso sempre lembrá-lo, não as monopolizou), e talvez tenha encontrado algum eco na eleição de quadros como Bolsonaro (RJ) e Heinze (RS), bem como em discursos como de Levy Fidelix. Digo “talvez” porque o termo “fascismo” aqui comporta (ao menos) a seguinte característica: a “escolha” de um inimigo como causa fantasmática de um problema, em contraposição ao qual, com a finalidade de aniquilar fisicamente tal inimigo, se propaga uma unidade do corpo social que se sobrepõe às e se esquece das fissuras socioeconômicas, das desigualdades da comunidade em questão.

Nas ruas, inimigos eram os políticos e partidos políticos, ditos (quase que essencialmente) corruptos e a nação brasileira deveria se unir para eliminá-los (se fisicamente, isso nem sempre era claro). Nas urnas, inimigos eram não só estes, mas também (e sobretudo) aqueles contra os quais a família (heteronormativa e patriarcal) brasileira deveria se unir: gays, lésbicas, transexuais, transgêneros (para quem se prega, se não a morte física, o internamento para “tratamento psicológico”, além do inferno durante e depois da vida, claro), assim como defensores do aborto em geral (que, até onde vi, não estão na lista dos a serem aniquilados, mas vai saber...) e, não raro, indígenas, quilombolas e “bandidos” (corporificado no velho lema, que veio à rua quase literalmente nos justiçamentos e segue subindo as favelas com bem mais literalidade (e letalidade), cujo alvo preferencial, se não exclusivo, são negros pobres: “bandido bom é bandido morto”).

Ora, como no primeiro caso os políticos são “parte do problema”, é possível imaginar que parte dos votos brancos, nulos e das abstenções (somadas, cerca de 27% do eleitorado) possa estar ligada aos fascistas da rua. Mas como, por outro lado, esse problema pode ser compreendido como um problema dos políticos e dos partidos políticos em questão, mas não do sistema político (e muito menos da democracia representativa) enquanto tal, é possível supor que esse eleitorado possa ter visto na eleição de políticos conservadores com laivos (e não poucos) de fascismo.

Todavia, não poucos preferem atribuir a eleição da maior bancada conservadora em 50 anos a um grupo mais amplo e mais difuso, que talvez constituía a maioria nas maiores manifestações de 2013. Mais ou menos identificados pela classificação antropológica precisa “coxinhas”, tal grupo seria formado por pessoas “menos acostumadas” com a lida política cotidiana, que se limitavam a comentar assuntos desse gênero entre amigxs e/ou nas redes sociais. O horizonte dessas intervenções é em geral o do senso comum mais ou menos difundido e reforçado, se não mesmo em parte criado, pelo oligopólio midiático. Tal senso comum se compõe de uma rejeição à política que vai do vago desinteresse, passando e confundindo-se com o papo de que “política não se discute” (“fundado” na infame analogia entre política, futebol e religião) até (confundir-se com) a raiva em relação aos políticos. Nisso, a referida rejeição costuma se valer, de maneira mais ou menos inconsciente, de (falsas, mas compreensíveis) indistinções entre política e políticos, entre política e eleição, entre política e Estado. Não raro, todo esse quadro é temperado com um apelo ao nacionalismo (da pátria de chuteiras, do samba, do futebol, da mulata, do povo alegre), em nome do qual todos deveriam se unir contra a corrupção (culpa exclusiva dos políticos corruptos) e por um Brasil Melhor, com mais saúde e educação (pautas que, assim em abstrato, são mesmo consensuais). Do ponto de vista socioeconômico, tais “coxinhas” estariam na “classe média”, sobretudo a “nova”, incluída no consumo nos anos do governo do PT. Do ponto de vista etário, seriam em sua grande maioria jovens.

Pois bem: é esse caldo ou, antes, esse salgado, que teria formado (predominantemente) as manifestações. Apesar de incluídos nos últimos anos, ou justamente por isso (isto é, pela consciência de que poderiam/deveriam querer mais), os coxinhas queriam mais e foram para as ruas com inúmeras pautas, lutar “contra tudo que está aí”. Repressão à parte, a falta de articulação política consistente, contudo, teria feito com que as manifestações de 2014, durante a Copa, não tivessem o mesmo fôlego. Pela mesma razão, ou por uma semelhante, o despertar do gigante teria resultado no sono das urnas, com o pesadelo da eleição de uma grande bancada conservadora, sobretudo em termos de direitos das (ditas) minorias (sexuais, de gênero, raciais), mas também no que diz respeito ao fundamentalismo religioso (evangélico e católico), à defesa aberta da ditadura, de medidas de segurança cada vez mais punitivistas e militarizantes, da volta e/ou ampliação de uma política econômica neoliberal, enfim, de um Estado inchado do ponto de vista da repressão e da criminalização dos movimentos sociais, das (ditas) minorias e da pobreza, ao mesmo tempo que enxuto no que se refere aos direitos, aos investimentos em serviços públicos, à intervenção no mercado.

Os principais responsáveis por esse quadro seriam, pois, os coxinhas. Eles são o espantalho, o sujeito-suposto-fazer-e-falar-merda dos vários espectros do político – em especial o (autoproclamado) de esquerda.

Acontece que a conta aqui, a meu ver fecha rápido demais. A deriva à direita do parlamento brasileiro não se relacionaria com a reação ao avanço, mesmo aos trancos e barrancos, da luta por direitos do movimento negro, LGBT, feminista, de favelas e periferias. Muito menos teria a ver com os erros da esquerda – em especial com as concessões e ações da esquerda no poder, ações e concessões que não raro põem em dúvida o caráter mesmo de esquerda desse poder (suposto que há poder ou, antes, governo de esquerda). A autocrítica não existe, ou é rara, ou sempre vem acompanhada de um “mas ainda assim é menos pior que...”.

Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek lembra que devemos tomar cuidado para não fazer o jogo do inimigo a ponto de acabarmos defendendo apenas uma cópia negativa do que ele quer – quando a tarefa é modificar o horizonte mesmo de coordenadas (da escolha, do desejo). Não é isso que acontece quando um Partido dos Trabalhadores, suposto que consiga se justificar no poder (e não meramente pelo poder), só possa fazê-lo na medida em que conserva(ria) certas conquistas diante de um governo pior – e não por propor novos patamares de avanço, quando as ruas abrem/abriram o horizonte para isso?

No lugar de questões desse gênero, da rara autocrítica, a “altercrítica” está por toda parte, com ou sem o argumento – ou desculpa – de que o momento tático não é esse, o da decisão eleitoral – “argumento”, para os setores que se dispuseram a essa autocrítica em outros momentos; “desculpa”, se não para a maioria, pelo menos para a ala mais poderosa da esquerda (?) no governo, que por palavras e (sobretudo) atos, continua crendo estar no rumo certo. Coxinha, claro, são os outros.


Numa próxima nota, pretendo pensar/mover a coisa mais à esquerda – o que significa, se o nome “esquerda” ainda pode nos servir de alguma coisa, movê-lo mais para baixo.

Publicado originalmente em: http://ideiaeideologia.com/nota11-10062014-rj-i/