domingo, 27 de outubro de 2013

A esquerda e o Cristo

(...) tenho pensado ultimamente que o sentido (metafísico) de uma posição radical de esquerda está justo em uma decisão (ética) radical pela compreensão da singularidade - mas em um sentido preciso: no sentido de acolher no compreender o que o singular tem de próprio; isto não seria nem uma "identidade" nem a "diferença", mas justamente: a radical incompreensibilidade. Bem entendido, "radical incompreensibilidade" não tem aqui apenas o significado "negativo" de que ninguém se compreende (sobretudo se crermos que a compreensão só existe onde há alguém e não o Ninguém) e que tudo é relativo, mas sim o sentido de que aquilo que nos é mais universal, mais compartilhado, o que nos faz Próximos uns dos outros é justamente a singularidade. É para que esta tenha lugar que lutamos; e o lugar em questão é a escuta. Nesse sentido, a luta política é a luta para criar um mundo enquanto espaço de escuta do incompreensível singular - em "mim" e no "outro". Trata-se de uma luta, pois, contra toda reificação, contra toda a redução abstrata do singular a qualquer que seja o nome abstrato - evangélico, gay, latino-americano, quiçá homofóbico, fascista, etc. Com isso não quero dizer que o abstrato não tenha lugar na compreensão; apenas se compreende que o singular jamais pode ser reduzido a ele e que, portanto, o abstrato nada mais é do que um momento da história de aproximação, pela compreensão, do incompreensível singular. Não vejo como, por exemplo, se devem existir instituições, essas não tenham que operar a partir de um nível - por vezes altíssimo - de abstração, de re(con)dução do singular ao universal.

É mais ou menos a partir daí que penso, aliás, a posição de um (aspirante a) cristão (e aqui talvez não poucos tapem os ouvidos...). Isso ao menos na medida em que a mensagem do Cristo possa ser sintetizada em duas máximas: "Não julgueis para não serdes julgados" e "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo". A primeira me diz justamente: não reduza o singular, em especial na pessoa do outro, ao abstrato. Bem compreendido, vou continuar emitindo pareceres (doxai) sobre as pessoas; só que não vou me arrogar o direito de reduzir quem quer que seja a esse parecer, de determinar de uma vez por todas quem é este com quem me relaciono (por mais difícil que seja escutá-lo...). Esse é o sentido do perdão no Cristo: a luta contra a redução do singular ao abstrato; contra a arrogância de, teria dito Descartes, reduzir Deus a "ficções, afetos humanos" e procurar determinar "o que Deus pode e deve fazer". No incompreensível singular, que o próximo tem em si, que o próximo "no fundo" é, eu confio: isso é a fé em Deus. E eu o acolho, eu procuro escutá-lo (na medida da minha finitude, ao menos): isso é amar. Sobre todas as coisas, eu tento acolher e escutar aquilo que é comum a todos nós, o fundamento mesmo da comunidade: o incompreensível singular que cada um é - isso é Deus. Amar ao próximo como a mim mesmo, portanto, é justamente o contrário de reduzi-lo à "minha imagem e semelhança": é reconhecer que o abismo nos une, que o que temos em comum é a "nossa" singularidade - que é a partir daí que se funda, e que precisamos fundar, a cada vez, a comunidade, a pólis.



(começo de agosto de 2013)