domingo, 1 de setembro de 2013

Para uma ontologia (política) da greve

Foto de rafaelrvsilva (http://instagram.com/p/dkgzlzCcxk/)

Para uma ontologia (política) da greve


Sócrates: (…) Os jardins de letras, ao que parece, ele os plantará por diversão/de brincadeira (paidiâs) e escreverá, quando escrever, para acumular um tesouro de lembranças para si mesmo, quando ele se tornar esquecido na velhice, e para outros que seguem o mesmo caminho, e terá prazer em vê-los brotando em folhas novas. Enquanto outros se ocupam de outras diversões, refrescando-se com banquetes e coisas como essas, ele passará o tempo, como eu disse, em tais prazeres.
Fedro: Você fala belissimamente de um passatempo (paidián) que não é fraco não – um passatempo de quem é capaz de se divertir (paízein) com palavras (en lógois) contando histórias (mythologoûnta) sobre a justiça e outras coisas semelhantes.”
(Platão, Fedro, 276d-e, tradução (de tempo) livre.)


A foto acima me pareceu um bom pretexto para lançar uma ontologia (política) da greve ou, antes, a partir da greve (no Rio de Janeiro). O que segue é quando muito um esboço.

Em filosofia, o termo "ontologia" é compreendido, em linhas gerais, como a "ciência do ser (em grego: "ón", "óntos") ", o "estudo do ser", "o discurso acerca do ser". Ora, o cartaz que está na foto cita a noção de ser ("o ser é único"); daí um primeiro nível de leitura da brincadeira (?).

Mas tem mais: ao dizer "o ser é único", o cartaz pode chamar a atenção de muitos ouvidos acostumados à tradição filosófica, na medida em que pode remeter à tese que não poucos fazem remontar a Parmênides: a tese de que "o ser é um". Esta, por sua vez, pode ser entendida como a afirmação de que, "no fundo", todas as coisas só parecem ser diferentes e múltiplas, mas "no fundo" são uma só e idêntica (coisa?): o ser. Assim isolada, a frase parece rememorar, portanto, uma questão - se não
a questão - fundamental da ontologia: a questão da relação entre um e múltiplo. É o que parece se confirmar quando se olha para a primeira frase do cartaz, para a palavra "plural" (o que lembra, ao menos àqueles ouvidos calejados, o "múltiplo").

"Parece", porque se lemos a frase toda, ela diz: "A escola é plural, pois o ser é único.". Tal leitura pode pôr em colapso toda a lembrança (apressada) do parágrafo anterior. Isso porque, no contexto da frase toda, "único" parece significar não que "tudo é um" (que a aparente multiplicidade e diferença entre as coisas "esconde", na verdade, uma unidade, uma identidade real), mas sim que cada ser, em especial cada pessoa, é único, é singular, não pode ser reduzida a outra coisa, é "pessoal e intransferível" (se me é permitido o pleonasmo de "pessoa pessoal e intransferível"). Isso fica mais explícito se compreendermos por "contexto da frase toda" não só a própria frase, mas a sentença que vem depois dela ("Liberdade pedagógica!"), bem como o fato de que o cartaz como um todo pertence a um contexto singular: uma greve de professores.

O que está sendo reivindicado aí é a liberdade, isto é, a possibilidade de decisão e escolha por parte dos professores sobre qual caminho seguir quando se trata de "promover" ou, antes, propiciar um âmbito adequado para que se dê o aprendizado (no qual aluno e professor têm funções diversas, mas do qual ambos participam). E como essa reivindicação está sendo feita diante do Estado; como, além disso, ela envolve relações de poder diversas; e como, mais fundamental, ela põe em questão o sentido mesmo no qual e para o qual está caminhando uma comunidade como um todo, tal reivindicação é eminentemente política. 

“Curiosamente” – só que não – tal liberdade é negada justamente por uma gestão de cunho neoliberal, na qual o máximo aproveitamento dos recursos financeiros e avaliações duvidosas, ambas responsáveis pela redução de pessoas a números abstratos, impessoais e “objetivos”, tomam à frente do processo de aprendizagem e das situações singulares em que ele pode se dar em nome de uma produção em série de índices que rendem financiamento federal e, colateralmente, mão de obra economicamente barata e politicamente dócil para o mercado. Nesse sentido, a operação ("onto-política") das secretarias de educação do Estado e do município do Rio, na medida em que esta comungam de um mesmo objeto, guarda semelhanças à redução do diferente ou, antes, do singular, à identidade cuja paternidade costuma ser atribuída a Parmênides (se com justiça ou não, esta não é a ocasião para julgá-lo). Pois em ambos a multiplicidade e sua diversidade (no caso da aprendizagem, as singularidades pessoais e intransferíveis) são meras aparências que escondem a identidade (do processo que) real(mente conta) - a saber, os índices abstratos nos quais só cabe uma diferença quantitativa traduzível em números. 

Por outra: o processo "real", concreto e singular da aprendizagem é posto como mera função, mero meio, mero adorno em que o que "realmente" importa são os índices abstratos (de aprovação, de "dividendos educacionais"). Nisso, aquele processo tende a ser esvaziado de sua "realidade", isto é: tende não só a realmente ser sem valor (pois funciona em outra ordem de valores que não os que podem ser comprados e vendidos), mas também a perder as condições (materiais e humanas, "reais") para a sua realização. E isso se dá porque o poder daquilo que, na verdade (isto é, do ponto de vista da aprendizagem mesma), não (precisa) importa(r) se impõe como o que realmente conta, uma vez que, diz-se, expressa "objetivamente" que um processo educacional "realmente" se deu (por meio de notas, estatísticas, etc.). Não são em condições como essas que professores se queixam que "fingem que ensinam" e que os alunos "fingem que aprendem" - ou seja, que a aprendizagem se torna mera aparência? Não foi contra essa lógica e pela "questão pedagógica" que (a meu ver acertadamente) o município e o Estado decidiram manter a greve? 

(Bem entendido, tudo isso não implica que estatísticas e notas não possam ter um papel no processo educacional como um todo (com as instituições e os problemas políticos que envolve); apenas pontuo que a aprendizagem e suas peculiaridades são o que realmente importa, e aqueles números contam, ou podem contar, enquanto estão a serviço dela)

Ora, a reivindicação política de liberdade pedagógica está fundada em uma afirmação acerca do ser das coisas, acerca de como as coisas são (ou precisam ser (compreendidas) em uma comunidade que se quer democrática...); daí a ideia de pensar uma ontologia (um discurso (lógos) sobre o ser), mas uma ontologia política. Nesse sentido, tal ontologia envolveria a discussão sobre como uma comunidade (um bairro, uma escola, uma cidade, um país, o mundo mesmo) compreende de fato, isto é, nas suas atitudes, procedimentos e instituições, o ser das coisas e das pessoas - e uma discussão sobre como ela "quer" (ou "precisa") compreendê-los de acordo com o destino, o caminho que esta comunidade em questão decide tomar.

Aliás, por via da política, a questão do todo (que estava de uma certa maneira no "tudo é um" implicitamente contido no "ser é um", convém lembrar) retorna, mas não como unidade e identidade que torna todas as diferenças mera aparência, mas como a ideia de que o que há de comum (poderíamos dizer, para sublinhar a unidade aí: com-Um) entre todos nós (pessoas, ao menos) é algo que escapa a toda identidade e diferença fixas: a singularidade. Criar o espaço para que isto se dê, este me parece ser, aliás, o "real" sentido da ideia de comunismo...



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Daí é tocar para frente (ou para trás, se for o caso), quiçá com a companhia dos caras que contemporaneamente tentam desenvolver essa questão do Uno-múltiplo, do idêntico-diferente, do mesmo-outro, relacionando-o com a política: o Badiou, o Zizek e companhia.


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Como se sabe, mas talvez não convenha esquecer, em grego "tempo livre" se diz skholé.

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